O vice-presidente e o Conselho Nacional da Amazônia Legal
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Decreto 10.239, que nomeou o vice-presidente da República, presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, além de irrazoável ao retirar de sua composição representantes dos estados da Amazônia Legal, o que enfraquecerá sobremodo a sua capacidade de articulação e encaminhamento de soluções de interesse da Região, é ilegal e inconstitucional, vulnerando limites impostos ao Chefe do Poder Executivo para dispor sobre a estrutura e funcionamento da Administração Federal.
Luiz Alberto dos Santos*
No dia 11 de fevereiro de 2020, o Chefe do Poder Executivo editou o Decreto 10.239, por meio do qual redefine a composição do Conselho Nacional da Amazônia Legal, e atribui ao vice-presidente da República a presidência desse colegiado, bem como a capacidade de designar suplentes.
A própria alteração da composição do Conselho já é um tema polêmico, pois foram excluídos do Conselho os governadores dos estados que compreendem a Amazônia Legal. Além disso, o Conselho, que integrava até então a estrutura do Ministério do Meio Ambiente, foi removido dessa Pasta e transferido para a Vice-Presidência da República.
Apesar de a atuação do ministro do Meio Ambiente, em defesa de políticas para a área, ser renomadamente uma tragédia, revelando, ao contrário, desprezo pela proteção ao meio ambiente e pela preservação da Amazônia, a solução adotada pelo Decreto 10.239 é um coquetel de ilegalidades e absurdos que não pode prosperar.
A questão do papel do vice-presidente da República na ordem administrativa e constitucional brasileira não é tema novo. Em 2015, no governo Dilma, chegou a ser cogitada a extinção da SRI (Secretaria de Relações Institucionais), órgão essencial da Presidência da República, e a transferência de suas competências para a Vice-Presidência da República, passando o vice-presidente da República a exercer as atribuições então conferidas ao Ministro de Estado-Chefe daquela Secretaria.
A medida não chegou a ser adotada, e o cargo de Ministro-Chefe da SRI permaneceu vago, com o vice-presidente exercendo, de fato, as funções de coordenação política do governo, o que é visto, hoje, como uma das causas imediatas do impeachment de Dilma Rousseff, embora o ex-presidente Temer negue ter atuado com esse interesse.
A solução de conferir-se, ao vice-presidente da República, a responsabilidade de titularizar uma pasta ministerial não é nova.
Essa já foi adotada no governo Lula, quando da nomeação do vice-presidente José Alencar para o cargo de Ministro da Defesa, exercido cumulativamente. Há também experiências de vice-governadores e vice-prefeitos que exercem ou exerceram, também, por nomeação, o cargo de secretário estadual ou municipal, acumulando as funções desses cargos com o daqueles [1].
No governo Dilma, o vice-presidente já exercia funções delegadas pela presidente, tendo exercido a presidência, pelo lado brasileiro, de 2 fóruns de discussões internacionais com os governos da China e da Rússia: a Cosban (Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Cooperação e Concertação) e a CAN (Comissão de Alto Nível de Cooperação Brasil-Rússia). Por determinação da presidente da República, coordenou, sem grande sucesso, o Plano Estratégico de Fronteiras, lançado no mês de junho de 2011.
No entanto, a solução de extinguir-se uma pasta ministerial, então cogitada, mas não implementada, e transferir suas competências em caráter definitivo e total para a “Vice-Presidência”, seria abertamente inconstitucional no plano formal e material.
Da mesma forma, padece o Decreto 10.239, de 2020, de grave inconstitucionalidade, explicitada no seu art. 1º.
Como já examinamos anteriormente [2], a rigor, inexiste, no ordenamento jurídico nacional, uma instituição chamada “Vice-Presidência da República”. O que existe é, nos termos do Decreto-Lei 1.066, de 29 de outubro de 1969, unidade voltada ao exercício dos “serviços administrativos” da Vice-Presidência. Via de regra, sempre se conferiu ao vice-presidente uma estrutura enxuta, como a prevista no Decreto 4.609, de 26 de fevereiro de 2003, que definia a estrutura regimental da “Vice-Presidência”, composta por um gabinete, assessorias e ajudância-de-ordens, voltadas a assistir e assessorar o vice-presidente no desempenho de suas atribuições, e prestar-lhe serviços de natureza pessoal.
Em 31 de janeiro de 2020, foi editado o Decreto 9.697, que ampliou a estrutura: a Vice-Presidência passou a contar, além do gabinete, com assessoria militar; assessoria jurídica; assessoria de temas institucionais; assessoria diplomática; assessoria de comunicação social; assessoria parlamentar; ajudância de ordens; e departamento de administração e finanças. A nova estrutura, composta por 63 cargos em comissão DAS e FCPE, representou aumento de 50% em relação à estrutura até então existente, em contexto em que muitos órgãos sofreram redução de cargos em comissão.
O novo Decreto segue na mesma toada, mas em sentido ainda mais amplo, pois atribui ao vice-presidente funções que não poderiam ser a ele delegadas, senão por lei complementar. E, inexistindo lei, o Decreto não tem capacidade para definir essas competências ou atribuições.
Não há, até o presente, norma legal dispondo sobre quais seriam as atribuições do vice-presidente, sendo necessário o exame do texto constitucional.
Define o caput do art. 79 da Constituição que cabe ao vice-presidente substituir o presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe, no caso de vaga. O parágrafo único desse artigo estabelece que “o Vice-Presidente da República, além de outras atribuições que lhe forem conferidas por lei complementar, auxiliará o Presidente, sempre que por ele convocado para missões especiais.”
Enquanto o art. 84 da Carta Magna, e diversos outros, definem o que compete ao presidente da República, e enquanto o art. 76 define que “o Poder Executivo é exercido pelo presidente da República, auxiliado pelos ministros de Estado” — silenciando quanto ao que cabe ao Vice-Presidente —, o art. 87 define as competências e atribuições dos ministros de Estado.
Tem-se, assim, que ou o Poder Executivo é exercido pelo presidente da República, diretamente, ou por ele e seus ministros de Estado, que são seus auxiliares imediatos.
O vice-presidente da República não é ministro de Estado, e só pode exercer o Poder Executivo em 2 circunstâncias, sem a necessidade da lei complementar referida no art. 79, parágrafo único: quando substitui o presidente, no caso de ausência ou impedimento, ou se for investido no cargo de ministro de Estado, como ocorreu com o vice-presidente José de Alencar. A sua participação como membro do Conselho de Defesa Nacional e do Conselho da República, órgãos de consulta ao presidente da República, está assentada na própria Constituição (art. 90 e 91).
Vale lembrar que a Lei Complementar de que trata o art. 79, parágrafo único, nunca foi editada — embora algumas proposições tenham tramitado com esse propósito no Congresso Nacional desde 1988 — e há controvérsia sobre qual seria o seu conteúdo possível.
A atual redação do art. 79, parágrafo único, é a mesma que constava da Emenda Constitucional 1, de 1969 (art. 77, § 2º). Embora não haja dúvida sobre a necessidade de lei complementar para atribuir, em caráter permanente, competências ou funções ao vice-presidente, não expressamente previstas na Constituição, o conteúdo dessa lei complementar depende, essencialmente, de juízo de conveniência, das circunstâncias e de um acordo político, uma vez que ampliaria as funções de um cargo que tem previsão constitucional apenas e tão somente como substituto eventual do presidente da República, ou membro de órgãos de consulta, e não como um “co-presidente da República”.
Essas competências ou funções, segundo Pontes de Miranda [3], “são atribuições de poderes executivos”. E, como tal, somente são atribuíveis por lei ordinária aos ministros de Estado, os quais são de livre nomeação e exoneração do presidente da República. Sendo o vice-presidente cargo político, eleito para mandato certo, não seria boa solução, no regime presidencialista, conferir à lei ordinária a possibilidade de ampliação de suas atribuições, visto que o titular do cargo, não se havendo bem na função, não poderia ser substituído ou exonerado do cargo de “vice-presidente”. Já se o vice-presidente for investido, concomitantemente, no cargo de ministro de Estado, a sua exoneração desse cargo é administrativamente possível, sem prejuízo das suas demais funções constitucionais, sendo que as atribuições do cargo ministerial — e do órgão ministerial — são exercidas em caráter permanente, e não temporário, excepcional ou casuístico, pelo seu titular.
Já quanto a sobre quais seriam as “missões especiais” para as quais poderia ser convocado o vice-presidente, as quais tem caráter necessariamente transitório e excepcional — e por essa razão classificadas como “especiais” —, assim ponderava Pontes de Miranda, considerando o sistema constitucional de 1969:
“(...) O presidente da República pode, entre outras missões, atribuir ao vice-presidente da República: a) exercer, em parte determinada, a direção superior da administração? b) colaborar na iniciativa de projeto de lei, de competência privativa do Presidente da República? c) colaborar no exame dos projetos de lei enviados para sanção? d) colaborar na estruturação, na discriminação de atribuições e funcionamento dos órgãos da administração federal? e) colaborar na mantença das relações com os Estados estrangeiros? f) colaborar para a celebração de tratados, convenções e atos interestatais? g) opinar quanto à futura atitude do Presidente da República em caso de guerra, ou de declaração de paz? h) colaborar no exame da situação para a permissão de trânsito de forças estrangeiras no território nacional, ou na permanência temporária, observados os pressupostos apontados pela lei complementar? i) auxiliar no comando supremo das forças armadas? j) colaborar no exame da situação para a mobilização nacional, total ou parcial? k) colaborar no tocante ao ato de decretação de estado de sitio? colaborar no tocante ao ato decretativo de intervenção federal e nos atos de execução? l) auxiliar no ato de autorização de Brasileiro a aceitar pensão, emprego ou comissão de governo estrangeiro? m) colaborar no estudo de proposta de orçamento? n) colaborar na feitura da mensagem ao Congresso Nacional, com a exposição, com a exposição da situação nacional? o) auxiliar no exame das contas do Presidente da República? p) colaborar nos estudos dos fatos invocados para indulto ou comutação de penas? q) colaborar no exame de atos que sugerem os Ministros de Estado, ou alguns deles (...).” [4]
Sobre a questão, informa José Cretella Junior [5]:
"A lei complementar, desde 1967 (art. 79, § 2º, última parte), passando por 1969 (art. 77, § 2º, primeira parte) e chegando em 1988 (art. 79, parágrafo único, primeira parte) tem sido o veículo jurídico adequado para conferir atribuições ao vice-presidente da República, exceto na hipótese em que o Chefe do Executivo o convoque diretamente para missões especiais. Estas não precisam constar necessariamente da lista de atribuições que a lei complementar, taxativamente enumerar, não se excluem, por outro lado. Há, pois, atribuições que, se não constarem do rol das enumeradas na lei complementar, o vice-presidente não pode desempenhar, mesmo que o presidente as outorgue. (...)
O vice-presidente deverá auxiliar o presidente, sempre que for por este convocado para missões especiais. O art. 77, § 2º, da EC 1, de 1969, e o art. 79, parágrafo único da Constituição de 1988, aludem, pela primeira vez, às missões especiais atribuídas ao vice-presidente da República. Quais seriam essas atribuições? A resposta encontra-se na enumeração taxativa de tarefas que competem à União, art. 8º da EC 1, de 1969 e no art. 21 da Constituição de 1988.”
Há, assim, um leque amplo de possibilidades de missões “especiais”, consideradas “impróprias” na análise de Alexandre de Moraes [6], mas, em todos os casos, essa atribuição será transitória, voltada a um resultado específico e a serem exercidas num horizonte de tempo, não se integrando, em caráter permanente, às responsabilidades e prerrogativas do cargo. O próprio caráter da “convocação” já informa essa precariedade e transitoriedade, não produzindo uma solução institucional de natureza permanente, como reclamam os princípio da continuidade administrativa e da legalidade.
Assim, destaca-se a conclusão de que, por meio de mero Decreto, não pode o Chefe do Poder Executivo atribuir, ao vice-presidente da República, competências até então exercidas por órgão de natureza ministerial, e assim atribuídas a ministro de Estado, como é o caso da Presidência de um Conselho composto por ministros de Estado ou suplentes, com competências para coordenar e integrar as ações governamentais relacionadas à Amazônia Legal, propor políticas e iniciativas relacionadas à preservação, à proteção e ao desenvolvimento sustentável da Amazônia Legal, articular ações e opinar, quando provocado pelo presidente da República ou por quaisquer de seus membros, sobre propostas de atos normativos do governo federal relacionados à Amazônia Legal, além de fortalecer a presença do Estado na Amazônia Legal, acompanhar a implementação das políticas públicas com vistas à inclusão social e à cidadania na Amazônia Legal e assegurar o aperfeiçoamento e a integração dos sistemas de proteção ambiental, entre outras.
A transferência do Conselho Nacional da Amazônia Legal para outra pasta mediante decreto, assim como a definição de sua composição é, em princípio, admissível, embora a redução de sua composição, revogando norma em vigor desde 1995, seja um retrocesso e anacronismo de difícil justificação à luz do princípio da razoabilidade.
Mas inserir esse colegiado, que tem funções vinculadas ao exercício do Poder Executivo, à Vice-Presidência, não coaduna com os limites constitucionais à edição de decreto autônomo, prevista no art. 84, caput, inciso VI, alínea “a”, da Constituição, pois está inserindo em órgão que formalmente não existe, como instância do Poder Executivo, mas tão somente como órgão de apoio do Vice-Presidente da República.
Com efeito, somente por lei complementar tais competências (e as estruturas para tanto constituídas) poderiam ser atribuídas ao vice-presidente da República, dado o seu caráter permanente E, como fartamente sabido, se nem mesmo medida provisória não pode veicular conteúdo reservado à lei complementar pela Constituição (art. 62, §1º, III), menos ainda o poderá mero decreto presidencial.
Já a atribuição, por mera decisão presidencial, de missão especial ao vice-presidente, mediante “convocação”, não pode implicar a transferência do órgão de 1 Ministério para a Vice-Presidência, e terá que ser, necessariamente, transitória, e incompatível com o exercício típico, em caráter permanente, de atribuições ministeriais, sob pena de conflito direto com o disposto no art. 79, parágrafo único, já citado.
Assim, a solução possível, e que melhor atende aos limites constitucionais, seria a investidura do vice-presidente, pelo prazo que convier politica e administrativamente, no cargo de ministro de Estado, mantendo-se a estrutura ministerial existente, o que, sequer, requer a aprovação do Congresso Nacional para sua efetivação.
Mas, se o problema está na figura que atualmente ocupa a Pasta, sequer essa solução é necessária, pois bastaria a exoneração do atual titular e a nomeação de outro cidadão brasileiro para tanto habilitado, e com as qualificações necessárias, para que o problema de gestão fosse resolvido, sem a necessidade de soluções heterodoxas e ilegais.
Se, ao contrário, a intenção for a de promover a transferência das atribuições e competências de um órgão ministerial, contribuindo parar o seu esvaziamento, para a “Vice-Presidência”, vale dizer, para o vice-presidente da República, em caráter permanente, estaremos diante de inconstitucionalidade formal e material, visto se caracterizar imprópria e indevida atribuição de funções de Poder Executivo, em caráter permanente, ao vice-presidente da República, extrapolando os limites estabelecidos pela ordem constitucional.
Soluções políticas são, sem dúvida, necessárias para que o bom funcionamento do Governo e do sistema político atendam às necessidades do Estado e da Sociedade. Essas soluções, porém, hão de se conformar ao que determina e estabelece a Carta Política, pois as contingências e casuísmos não podem estar acima da Constituição, cujo sentido é assegurar a institucionalidade e previsibilidade do exercício do Poder pelos seus titulares eleitos ou nomeados politicamente.
Independentemente do mérito individual ou da conveniência de uma ou outra solução, há que se preservar o que define o ordenamento constitucional, que oferece soluções seguras para essas situações.
Portanto, o Decreto 10.239, além de irrazoável ao retirar de sua composição representantes dos estados da Amazônia Legal, o que enfraquecerá sobremodo a sua capacidade de articulação e encaminhamento de soluções de interesse da Região, é ilegal e inconstitucional, vulnerando limites impostos ao Chefe do Poder Executivo para dispor sobre a estrutura e funcionamento da Administração Federal.
(*) Consultor legislativo do Senado Federal. Advogado. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Mestre em Administração e doutor em Ciências Sociais. Professor da Ebape/FGV. Ex-subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil - PR (2003-2014).
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NOTAS
[1] Um caso notório é o exercício pelo ex-vice governador do Rio Grande do Sul, Miguel Rossetto, do cargo de secretário de Governo, durante a gestão Olívio Dutra, no estado do Rio Grande do Sul (1999-2002)
[3] PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1967. Com a Emenda 1, de 1969. Tomo III (Arts. 32-117). 2.ed., revista. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969, pp. 300.
[4] Idem, p. 303-305
[5] CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988. vol. V. Artigos 38-91. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.
[6] MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Anotada e Legislação Constitucional. 7ª. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 1.259.