Em 3 de setembro de 2020, foi encaminhada à Câmara dos Deputados a Mensagem 504/20, do presidente da República, que submete à deliberação do Congresso Nacional o texto da PEC (proposta de emenda à Constituição) que “Altera disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa”.

Luiz Alberto dos Santos*

reforma administrativa pec 32 ccj

Essa proposta recebeu o número 32, de 2020, passando a ser identificada como a “Reforma Administrativa” do governo Bolsonaro.

Foi, imediatamente, submetida ao exame de admissibilidade pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania) da Câmara dos Deputados, que concluiu, após extensos debates, pela aceitação do texto, por meio de parecer aprovado em 25 maio de 2021.

Em 9 de junho de 2020, foi constituída comissão especial para o exame do mérito da PEC 32/20 e exame de emendas apresentadas com apoiamento de 1/3 dos membros da Câmara. Também após debates e audiências públicas, foi aprovado o parecer do relator, deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), em 24 de setembro de 2020, concluindo pela aprovação da PEC 32/20, na forma de substitutivo.

Não obstante, o texto aprovado pela comissão, e que desde então aguarda apreciação pelo plenário da Casa, tenha alterado substantivamente o teor da proposta original, reduzindo o grau e intensidade das alterações relativas a Regime Jurídico, regras de ingresso e desenvolvimento, estabilidade e política remuneratória, o substitutivo é, ainda, bastante agressivo, trazendo insegurança para muitos servidores nos 3 níveis de governo, ampliando as possibilidades de uso de entes privados para prestação de serviços públicos, e reduzindo o grau de proteção contra a discricionariedade do governante ou questões conjunturais.

Em vista disso, as entidades representativas de servidores públicos têm defendido a retirada, pelo governo eleito, em 30 de outubro de 2022, da PEC 32/20. Declarações do então coordenador técnico da Equipe de Transição sinalizam no sentido de que o presidente eleito apoiaria a necessidade de uma “reforma administrativa”, mas “não nos moldes da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32”1. Segundo o ex-ministro e ex-senador Aloizio Mercante, e atual presidente do BNDES, “temos outra visão do serviço público” e “temos que construir um Estado mais eficiente, transparente e que promova a carreira”.

Com efeito, para tal finalidade, a PEC 32/20 tem contribuição mínima a oferecer e a aprovação pela comissão especial se deu em ambiente adverso à essa perspectiva, tendo sido aprovada pelo colegiado — ainda que amenizada — sem que estivessem dadas sequer as condições para aprovação em plenário, razão pela qual a mesma ainda não foi apreciada. Não obstante, o presidente da Câmara dos Deputados chegou a anunciar que a PEC seria submetida ao plenário da Casa ainda no ano de 20222, o que não ocorreu.

Nesse contexto, vem a lume a questão da possibilidade de retirada, pelo novo governo, a partir de 2023, da PEC 32/20, o que evitaria que seja submetida ao exame do plenário da Câmara, com nova composição a partir de 2 de fevereiro de 2023, uma proposta altamente contaminada, desde a origem, por premissas equivocadas e propostas contraditórias com os objetivos propostos pelo novo governo.

A impossibilidade de apresentação de novas emendas, em plenário, e a exiguidade das emendas apresentadas na fase regimental da comissão especial, para a produção de novo substitutivo, requerem que o debate seja retomado, se o for, a partir do começo, ou seja, com o encaminhamento de nova Proposta de Emenda à Constituição pelo Executivo  embora, a rigor, pouco do que necessita ser feito para reformar o serviço público no Brasil dependa de emenda à Constituição3.

Regimentalmente, porém, a retirada da PEC 32/20, enfrenta alguns obstáculos e requisitos.

Sobre essa questão, a Constituição é silente. Essa apenas estabelece os requisitos para a apresentação e deliberação de PEC, vedando no art. 60 a apresentação ou apreciação de proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos poderes; e os direitos e garantias individuais. Enquanto as PEC de iniciativa de parlamentares precisam ser apresentadas por 1/3 dos membros da Casa iniciadora, o chefe do Executivo pode, individualmente, apresentá-las ao Congresso, iniciando-se a tramitação pela Câmara dos Deputados.

Os regimentos das casas dispõem sobre a tramitação de PEC.

O art. 104 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, ao tratar do tema, prevê que:

“Art. 104. A retirada de proposição, em qualquer fase do seu andamento, será requerida pelo Autor ao Presidente da Câmara, que, tendo obtido as informações necessárias, deferirá, ou não, o pedido, com recurso para o plenário.

§ 1º Se a proposição já tiver ao menos um parecer favorável, somente ao Plenário cumpre deliberar a respeito da retirada.

§ 2º No caso de iniciativa coletiva, a retirada será feita a requerimento de, pelo menos, metade mais um dos subscritores da proposição.

§ 3º A proposição de Comissão ou da Mesa só poderá ser retirada a requerimento de seu Presidente, com prévia autorização do colegiado.

§ 4º A proposição retirada na forma deste artigo não pode ser reapresentada na mesma sessão legislativa, salvo deliberação do Plenário.

§ 5º Às proposições de iniciativa do Senado Federal, de outros Poderes, do Procurador-Geral da República ou de cidadãos aplicar-se-ão as mesmas regras.”

Por expressa determinação do art. 104, § 5º, supra, também as propostas do chefe do Executivo devem seguir a regra geral: a PEC somente poderia ser retirada, sem a aceitação do plenário da Casa, se ainda não tivesse sido apreciada em comissão especial.

Consideramos que, para fins dessa possibilidade, não deve ser considerado o parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, visto que nessa comissão não há, ainda, o exame do mérito, mas apenas das condições para a tramitação da PEC, fixadas no art. 60, que além de vedar que a PEC seja tendente a abolir as “cláusulas pétreas”, e se está sendo respeitado o seu § 1º, segundo o qual a Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.

O parecer a que se refere o art. 104, portanto, é o parecer de mérito, que, no caso de projetos de lei ordinária, são emitidos pelas comissões permanentes; no caso de PEC, pela comissão especial. Esse entendimento tem lastro no art. 114, VII do Regimento Interno, segundo o qual são “imediatamente despachados pelo presidente”, os requerimentos que solicitem “retirada, pelo autor, de proposição com parecer contrário, sem parecer, ou apenas com parecer de admissibilidade.”

E, no caso da PEC 32/20, o parecer de mérito já foi aprovado e a PEC acha-se pronta para ser incluída na ordem do dia do plenário.

Para a retirada, caberia do chefe do Executivo o envio de nova mensagem presidencial, solicitando a retirada da proposta; contudo, o plenário teria que aprovar, por maioria simples, o requerimento de retirada da PEC. Embora não seja requerimento sujeito a quórum qualificado para aprovação, a retirada, tampouco, é “automática”.

Note-se que, em 1998, o chefe do Executivo encaminhou ao Congresso o Projeto de Lei 4.302, dispondo sobre as relações de trabalho na empresa de trabalho temporário e na empresa de prestação de serviços a terceiros, e dá outras providências. Essa proposição teve parecer aprovado em 29.11.2000 pela Comissão de Trabalho, de Administração e de Serviço Público. Em 13.12.2000, o PL 4.302 foi aprovado pelo plenário da Câmara e enviado ao Senado, onde foi aprovado substitutivo em 17.12.02, remetido à Câmara para novo exame. Contudo, em 19.08.03, o presidente da República retirou o pedido de retirada da proposição, por meio da Mensagem 389/03.

Essa Mensagem, contudo, jamais foi submetida ao plenário da Casa, e, em 22.03.17, o plenário da Câmara aprovou o substitutivo do Senado, remetendo a matéria à sanção, convertida, então, na Lei 13.429, de 31.03.17.

A bancada do Partido dos Trabalhadores recorreu em 27.03.17 ao Supremo Tribunal Federal por meio do Mandado de Segurança 34.714, visando anular a votação do Projeto de Lei 4.302/98, ocorrida na sessão plenária da Câmara dos Deputados realizada dia 22 de março de 2017 e, assim, impedir a promulgação da lei resultante, em face da não deliberação pelo plenário sobre o pedido de retirada apresentado em 2003. Contudo, a Corte somente veio a apreciar o pedido em 4 de abril de 2017, ocasião em que o Mandado de Segurança foi considerado prejudicado por perda de objeto e, assim, não houve o deslinde da questão submetida à Corte, produzindo-se o fato consumado.

Também não é o caso de, encerrada a legislatura, a PEC 32/20 ser objeto de arquivamento, nos termos do art. 105 do Regimento, alterado em 2022 pela Resolução 33 para ampliar as hipóteses de arquivamento de matérias na Câmara dos Deputados. Segundo essa norma, finda a legislatura, são arquivadas “todas as proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e ainda se encontrem em tramitação”, excetuadas, contudo, na forma do atual inciso VI “as destinadas à elaboração das espécies normativas referidas no art. 59 da Constituição Federal que não tenham tramitado por 3 (três) legislaturas completas”. Tendo iniciado a tramitação em 2020, a PEC 32/20 ainda não cumpriu esse trâmite.

Em vista desses elementos, conclui-se que a retirada da PEC 32/20, embora possível, não é automática, e dependerá de despacho do presidente da Câmara dos Deputados que submeta a mensagem presidencial ao plenário; caso não o faça, porém, a matéria poderia ir a votos, produzindo-se a mesma situação verificada no caso do PL 4.302/98, caso aprovada. Se submetida a mensagem, com o pedido de retirada ao plenário, será necessária aprovação pela maioria simples dos membros da Casa.

(*) Consultor legislativo do Senado. Advogado

SOARES, I; LESSA, H. Salários devem ter recomposição gradual. Correio Braziliense, Brasília, 07.12.2022, p. 7, e Bitencourt, R; Schuch, M; Tonet, C; Valadares, J. Mercadante sinaliza para aumento do funcionalismo. Valor Econômico, São Paulo, 07.12.2022, p. A-11.

Entidades reagem à sugestão de Lira de votar reforma administrativa ainda este ano. Brasil de Fato, 06.10.2022. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2022/10/06/entidades-reagem-a-sugestao-de-lira-de-votar-reforma-administrativa-ainda-este-ano 

Ver SANTOS, L. A. A eleição de 2022 e a reforma administrativa necessária. Congresso em Foco, 17.08.2022. Disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/a-eleicao-de-2022-e-a-reforma-administrativa-necessária/ 

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