Em recente visita à França, o presidente Lula, ao falar para alguns chefes de Estado sobre a questão climática, chamou a atenção para a necessidade urgente de o combate às desigualdades e para o papel dos organismos multilaterais no enfrentamento dessa emergência humanitária, levantando debate importante a respeito do tipo de democracia que queremos para o Brasil e para o mundo neste momento da História.

Antônio Augusto de Queiroz*

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O problema da desigualdade, presente em todos os países e que é responsável pela crise humanitária existente no mundo, não se resolve apenas com princípios abstratos da democracia representativa — aquela procedimental, institucional ou formal —, mas com a concretude das demandas materiais do povo mediante a democracia substantiva, que, além dos aspectos formais, pressupõe participação efetiva e atendimento das necessidades básicas dos povos.

De fato, a desigualdade de renda, de oportunidade, de acesso a bens materiais e imateriais, é brutal e num cenário desses não há regime político democrático que se sustente cuidando apenas das liberdades e das formas de exercício do poder. O cidadão, que é fonte do poder, não aceita mais como ético esse tipo de democracia, no sentido apenas formal, que busca o apoio, o voto e a legitimação do exercício do poder, sem compromisso com o atendimento de suas necessidades, aspirações e demandas.

Financeirização e individualismo
Realmente, nesse mundo dominado pela financeirização da economia e pelo individualismo, o que tem acontecido é que muitas vezes o eleitor que legitima o regime político — em lugar de ser a prioridade máxima dos governantes — se constitui na principal vítima da agenda adotada pelos titulares dos poderes, numa completa inversão de valores ou manipulação da vontade popular.

Esse debate faz todo o sentido na atualidade, especialmente neste mundo globalizado, no qual as elites econômicas e sociais, integrantes das classes altas e ricas da sociedade, muitas vezes promotora de desigualdades, quando ficam inseguros ou insatisfeitos em seus países de origem, após terem usufruído do Estado (estudando em universidades públicas) e acumulado recursos (explorando atividades lucrativas) ou adquirido direitos (aposentadoria etc.), por exemplo, de forma egoísta, simplesmente o deixam, comprando sua cidadania em outro país em busca de melhor qualidade de vida.

Fala oportuna de Lula
Nessa perspectiva, a fala de presidente Lula foi muito oportuna e até fundamental também para o Brasil, pois essa não apenas levanta o debate acerca do tipo de democracia que queremos, mas sugere a necessidade de passos concretos, de um lado, apresentando as diferenças entre democracia meramente representativa e democracia substantiva, e, de outro, recomendando o uso e aproveitamento dos espaços institucionais para fortalecer o exercício da cidadania e propor medidas concretas visando modelo de democracia que seja participativo, inclusivo e justo.

Quanto à primeira dimensão, relativa ao conceito de democracia, parece evidente, a que praticamos, a representativa ou formal, que alcança apenas a constituição e organização dos poderes políticos e os direitos civis (direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei, o direito de ir e vir, de expressão e pensamento etc.) e os direitos políticos (direito de votar e de ser votado, de associação, de manifestação e de fundar e participar de partido político etc.), não satisfaz nem atende às demandas e necessidades reais dos povos.

Assim, se a democracia não for comprometida com valores e garantidora de igualdade no acesso aos bens e necessidades básicas, como educação, saúde, segurança, transporte, alimentação e lazer, assim como com a efetiva participação da cidadania, não se sustenta.

Por isso, é preciso evoluir, mesmo que de forma incremental, para a democracia substantiva, cujo escopo vai além dos aspectos formais e visa dar concretitude aos seus enunciados, regulando os fatos jurídicos relacionados a bens e utilidades da vida, além de estender a influência do cidadão sobre a formulação e implementação de políticas públicas e sobre as prioridades orçamentárias, e, portanto, avançando sobre os direitos materiais, especialmente os sociais, econômicos e culturais.

Fortalecer a cidadania e propor medidas concretas
Quanto à segunda dimensão, de utilização de espaços institucionais para fortalecer a cidadania e propor medidas concretas, o governo do presidente Lula já deu passos importantes ao criar os conselhos de Participação Social e de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável, ambos na Presidência da República.

Que são espaços de escuta e formulação de políticas públicas para a valorização de sociedade civil ativa e diversa e mercado economicamente competitivo e produtivo.

O Conselho de Participação Social, sob a coordenação da Secretaria-Geral da Presidência da República, por exemplo, lidera nesse momento, com o Ministério do Planejamento e Orçamento, o debate do Plano Plurianual, o PPA Participativo, em todas as regiões e segmentos organizados do País.

O objetivo é ouvir a população e receber sugestões para a definição dos objetivos, das diretrizes, das prioridades e das metas do governo federal para os próximos 4 anos, que serão estabelecidos e desenvolvidos de forma regionalizada.

Conselhão
O Cdees (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável) - Conselhão, sob a direção da SRI (Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República), em linha com o desafio de promover articulação da sociedade civil para a consecução de modelos de desenvolvimento configurador de novo e amplo contrato social, por sua vez, tem a missão de aconselhar e recomendar ao presidente da República novas políticas públicas ou contribuir para o aperfeiçoamento de políticas já existentes.

O Conselhão, em sua missão de contribuir para o aprimoramento da democracia e ampliar a participação dos agentes econômicos e sociais nas decisões governamentais, em plena sintonia com a dimensão substantiva da democracia, se estruturou em 5 comissões temáticas: 1) Combate de Desigualdades; 2) Assuntos Econômicos; 3) Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; 4) Direito e Democracia; e 5) Tecnologia e Transformação Digital.

Direitos
A solução, dentro da lógica da democracia substantiva, passa por compromissos e atitudes políticas. E isso, sob a liderança de governos inclusivos, eficazes e íntegros, é plenamente possível, tanto na dimensão de fortalecer os mecanismos amplos de consulta, incluindo plebiscito, refendo e iniciativa popular e promover novas formas de accountability (prestação de contas), quanto na perspectiva de plena implementação das conquistas do processo civilizatório, representado pelas 5 gerações de direitos: civis, políticos, sociais, econômico e culturais, difusos e coletivos e os bioéticos.

Porém, na realidade atual, não basta promover a participação e incluir o povo pobre no orçamento, é preciso também combater as campanhas de ódio e a disseminação de fake news — promovidas pela extrema-direita excludente e antidemocrática contra as pessoas, agentes políticos e instituições que defendem especialmente as 3 últimas gerações de direitos — que corroem os fundamentos do regime democrático e da forma republicana de governo, além de promover a rejeição ao sistema político de alternância no poder.

Promover a inclusão
A revolução tecnológica, com os avanços da robótica, da digitalização e da automação devem servir para promover bem-estar, reduzindo a presença do homem no trabalho repetitivo, insalubre e isolado, assim como as facilidades, comodidades e rapidez proporcionada pela rede mundial de computadores, a partir do uso da internet e dos diversos mecanismos de comunicação virtual, devem servir para educar, informar, entreter e, principalmente, para promover a inclusão, a interação e a paz social, e não para promover a disseminação de fake news.

O acesso facilitado à essas tecnologias devem, também, propiciar o avanço da própria democracia participativa, mas com amplo acesso à informação idônea e compreensível ao cidadão sobre o governo, suas instituições, políticas e propostas.

Democracia substantiva
O caminho, como se vê, passa pela valorização da democracia substantiva, que, de um lado, combate desigualdade, exclusão e egoísmo, e, de outro, assegura a participação e proteção às minorias e aos grupos mais vulneráveis à violência, ao desemprego e às privações.

Sinalizar para a cidadania plena, com participação popular e acesso às 5 gerações de direitos, contribui para melhorar o humor e o ambiente político, para resgatar o sentimento de confiança em um mundo melhor, a partir da expectativa de mais dignidade e respeito aos direitos humanos e às novas formas de diálogo e disputas políticas, além de facilitar o combate às fake news, essa erva daninha utilizada para espalhar o ódio e desagregar as pessoas, as famílias e os países.

(*) Jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. É sócio-diretor das empresas “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”, foi diretor de Documentação do Diap. É membro do Cdess (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável da Presidência da República) - Conselhão. Publicado originalmente na revista eletrônica Teoria&Debate

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