Tecnofeudalismo e o monopólio dos conglomerados digitais
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- Categoria: Agência DIAP
Entenda a teoria que decretou o fim do capitalismo e comparou big techs a senhores feudais
O capitalismo morreu — e foi substituído por algo pior.
Esta é a teoria do economista Yanis Varoufakis, autor de “Tecnofeudalismo”, que será lançado no Brasil em abril pelo selo Crítica, da editora Planeta. Na Agência O Globo
Yanis Varoufakis, em 2015 | Foto: Angelos Tzortzinis/The New York Times
Alçado a pop star por suas ideias disruptivas, o ex-ministro da Economia da Grécia destaca termo que deu o que falar nos últimos meses, com a eleição de Donald Trump e a forte influência em seu governo de bilionários da tecnologia como Elon Musk e Peter Thiel.
O conceito de tecnofeudalismo é usado por teóricos para explicar o monopólio dos conglomerados digitais e sua capacidade de controlar as atividades sociais.
Para os adeptos do termo — popularizado pelo pensador francês Cedrid Durand —, o sistema econômico em torno de big techs está cada vez mais parecido com o que vigorou na Europa na Idade Média.
Em seu livro, Varoufakis afirma que os mercados teriam sido substituídos por plataformas de comércio digital que, na prática, operam como os antigos feudos.
Os usuários digitais se tornariam “servos”, enquanto os detentores do capital tradicional — maquinário, redes telefônicas, robôs industriais — se limitariam ao papel de “vassalos”. E o lucro, motor do capitalismo, teria sido substituído por seu antecessor feudal: a renda.
Distopia digital
Para o ex-ministro, a nova lógica econômica revela não somente a nossa relação de subserviência com as big techs, como ajuda a entender tanto a derrocada das democracias liberais quanto a nova Guerra Fria entre Estados Unidos e China — passando pela compra do X por Elon Musk.
“Nos últimos 20 mil anos, houve muitas inovações tecnológicas, mas com o capital sempre se mantendo como um meio de produção”, diz Varoufakis, em videoconferência.
“Com o surgimento de big techs e dos algoritmos que ‘vivem’ em nossos celulares, o capital agora modifica nosso comportamento. Essa mutação transformou o capitalismo em outro modo de produção socioeconômico.”
O diagnóstico seria duro choque de realidade para os que concentraram suas esperanças nas utopias digitais. No início do milênio, as possibilidades da internet levaram teóricos a prever era de descentralização, colaboração e autonomia. 25 anos depois, pesquisadores alertam para cenário oposto.
Segundo Varoufakis, empresas como Google, Amazon, Meta e Microsoft concentraram poder e verticalizaram o espaço digital. O economista criou conceito para definir a dinâmica: capital-nuvem. Este novo capital teria destruído 2 pilares do capitalismo, os mercados e o lucro, e os substituído pela extração de recursos dos usuários.
Domínio territorial
Em vez de lucrar com a venda de bens e serviços, escreve o autor, as plataformas acumulam riqueza cobrando acesso aos seus territórios virtuais. Essas impõem suas infraestruturas tecnológicas — nuvens, redes e algoritmos — e cobram “aluguel” pelo seu uso, criando dependência dos usuários.
Nossas atividades cotidianas nessas mídias geram dados e interações valiosos para plataformas, mas não somos remunerados diretamente por isso. Até mesmo grandes corporações industriais dependem das plataformas digitais para alcançar seus clientes.
“As plataformas não apenas intermedeiam mercados, mas também os dominam”, diz David Nemer, professor da Universidade da Virgínia. “As empresas não operam em uma lógica puramente mercadológica. Há muito de controle e extração. Os usuários não são clientes no sentido clássico, mas servos que geram dados e precisam dessas plataformas para acessar informações, trabalho e serviços essenciais.”
Pesquisadores apontam 2 momentos para a ascensão das big techs.
Na crise financeira de 2008, essas se tornaram alternativas de negociação mais barata e menos arriscada para investidores assustados.
Já a pandemia, entre 2020 e 2022, reforçou a nossa dependência das plataformas digitais, com as empresas de tecnologia acumulando mais riqueza enquanto o restante sofria perdas.
“Quando falamos em tecnofeudalismo, há uma associação geográfica com esses territórios digitais, que hoje contam com uma população de 5 bilhões”, observa Kenneth Corrêa, professor de MBA da FGV. “Pela quantidade de atenção que as pessoas dedicam a esse mundo, dá para dizer que elas têm a sua vida controlada.”
As informações que recebemos são selecionadas por meio dos algoritmos e somos dependentes das suas ferramentas para nos comunicarmos. Somos subjugados pelo domínio e o controle dessas empresas.
Pesquisador do Ibict (Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia), Arthur Coelho Bezerra concorda que vivemos “repaginação da ordem medieval”.
“Com a concentração desmedida de poder em poucos órgãos, o capitalismo se tornou tão selvagem que regrediu”, diz Bezerra, autor do livro “Miséria da informação: dilemas éticos da era digital” (Editora Garamond).
“Se no passado tivemos a igreja e a aristocracia, hoje temos essas empresas com valor de mercado na casa do trilhão. A concentração econômica é tão grande que agora eles investem na concentração política, fazendo de marionete governos como o dos Estados Unidos.
Bezerra se refere à influência das big techs na Presidência de Donald Trump. Dono do X, Elon Musk é visto por muitos como o “verdadeiro” chefe de Estado dos EUA. À frente do Departamento de Eficiência Governamental, ele cortou agências e funcionários federais e acessou dados de diversos órgãos, incluindo o de seus próprios concorrentes comerciais.
Diante disso, ordem de restrição temporária foi solicitada por grupo de 14 procuradores-gerais estaduais democratas — logo rejeitada por juíza federal.
Regulação
Para David Nemer, a concentração de poder das big techs continuará enquanto não houver regulação mais rigorosa, no Brasil e no mundo.
“Essas empresas criam suas próprias regras, cobrando ‘pedágios’ em diferentes setores da economia”, diz Nemer. “Isso reconfigura a relação de poder econômico, colocando plataformas como árbitros de mercados inteiros, do comércio eletrônico à mídia e ao trabalho.”
Ainda segundo o pesquisador, o tecnofeudalismo acelerado da Era Trump pode agravar questões como a colonização digital — exercida por meio de controle, coleta e utilização de dados digitais —, a manipulação da informação e a erosão do trabalho formal — com o modelo baseado em serviços de aplicativos substituindo empregos estáveis por trabalhos precários e intermitentes.
“O impacto no Brasil será muito ruim”, lamenta Nemer. “O País já sofre com a dependência tecnológica e a falta de soberania digital. Se os EUA consolidarem um modelo tecnofeudal, o Brasil pode ficar ainda mais refém das big techs, seja pela dependência de seus serviços, seja pela influência política que essas plataformas exercem na manipulação de informações e na dinâmica eleitoral.
Contraponto
Os paralelismos com os sistemas econômicos medievais incomodam alguns historiadores. Professor do departamento de História e relações internacionais da UFRJ, Clínio de Oliveira Amaral lembra que o próprio conceito de “feudalismo” não existiu na idade média. Para ele, economistas como Yanis Varoufakis tiveram a sua visão sobre o período formada pela compreensão econômica dos pensadores dos séculos 18 e 19.
“O feudalismo é uma invenção do século 19 em um momento em que o capitalismo expandia-se e, para tanto, havia eleito a ‘anarquia feudal’ como um entrave ao seu desenvolvimento”, diz o historiador.
“O tecnofeudalismo faz comparações simplistas com o contexto contemporâneo, desconsiderando a forma como o capitalismo mobilizou a idade média para se legitimar. Naquele momento da história, o mal a ser combatido era as reminiscências feudais.”