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Neuriberg Dias*

O debate sobre a adoção do voto distrital misto em substituição ao voto proporcional ressurge na Câmara dos Deputados em um momento particularmente inoportuno em razão da postura recente do Congresso Nacional, que tem promovido medidas como a proposta de blindagem de mandatos, o aumento do número de representantes, flexibilização na aplicação da Lei da Ficha Limpa e a ampliação do valor das emendas parlamentares vinculadas ao orçamento impositivo.

Segundo o ex-senador da República Geraldo Mesquita Júnior, em seu “Curso Política ao Alcance de Todos”, as condições necessárias e suficientes para a existência da democracia representativa são quatro: eleições periódicas, livres, competitivas e não manipuladas. À luz desses princípios, é possível examinar os impactos e desafios de cada modelo eleitoral, evidenciando que o sistema proporcional se mostra mais compatível com a realidade plural e complexa brasileira.

O sistema proporcional, vigente no Brasil nas eleições para deputados estaduais, distritais e federais e vereadores, tem como base a ideia de que o poder político deve refletir a pluralidade de opiniões da sociedade. Nesse modelo, cada partido ou federação apresenta uma lista de candidatos, e o número de cadeiras conquistadas é proporcional à quantidade de votos obtidos pela legenda.

Trata-se de um mecanismo que valoriza a representatividade permitindo que diferentes correntes de pensamento, minorias políticas, étnicas e sociais encontrem espaço no Parlamento. Essa amplitude de vozes é essencial para a consolidação de uma democracia inclusiva e participativa, na qual o poder não se concentra nas mãos de poucos grupos ou regiões.

Além disso, o voto proporcional, ao garantir o pluralismo partidário, e seus aperfeiçoamentos promovidos pela cláusula de desempenho, assegura efetivamente a representatividade. O modelo não apenas mantém a presença de múltiplas visões políticas, mas também aprimora o funcionamento do sistema representativo, preservando a liberdade de escolha do eleitor e a competitividade entre partidos — duas das condições fundamentais destacadas por Mesquita Júnior.

Embora o voto proporcional apresente desafios, como o enfraquecimento do vínculo direto entre o eleitor e o representante, essas questões vêm sendo progressivamente enfrentadas por meio de reformas pontuais e mecanismos de aperfeiçoamento, sem que se comprometa o princípio maior da representatividade. É preferível lidar com a complexidade inerente a um sistema plural do que correr o risco de reduzir a diversidade política, enfraquecendo a própria essência democrática.

Em contraposição, o voto distrital busca aproximar o representante do eleitor por meio da divisão do território em distritos, cada um elegendo apenas um parlamentar. À primeira vista, tal arranjo parece fortalecer a responsabilização política, já que o representante responderia diretamente à sua comunidade local. Contudo, na prática, o voto distrital tende a produzir efeitos perversos sobre a representatividade. Ao concentrar o poder em disputas localizadas e majoritárias, o sistema exclui do processo legislativo uma grande parcela de eleitores cujos votos não se traduzem em cadeiras, distorcendo a vontade popular e favorecendo candidatos com maior poder econômico ou estrutura política consolidada.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal tem adotado medidas para corrigir distorções no sistema proporcional. Em decisão recente, o STF declarou inconstitucionais as restrições impostas pela Lei nº 14.211/2021 à distribuição das chamadas “sobras eleitorais”, restabelecendo a participação de todos os partidos e candidatos nessa etapa. A medida reforça o princípio da representatividade e busca garantir que o maior número possível de votos válidos se traduza em assentos parlamentares, fortalecendo a pluralidade política e a legitimidade do sistema proporcional.

Outro risco grave do voto distrital é a manipulação geográfica dos distritos, prática conhecida como gerrymandering, que pode comprometer as condições de igualdade e competitividade das eleições — justamente um dos critérios apontados por Mesquita Júnior como essenciais à democracia representativa. Soma-se a isso a possibilidade de favorecer o personalismo político e a influência de interesses privados ou ilícitos, como o financiamento irregular de campanhas e a infiltração do crime organizado em regiões específicas.

Quando confrontados os dois sistemas à luz das quatro condições democráticas — eleições periódicas, livres, competitivas e não manipuladas —, o voto proporcional revela-se mais capaz de atendê-las plenamente. Ele garante liberdade de escolha por meio da ampla oferta de partidos e candidatos; assegura eleições competitivas e abertas; reduz o risco de manipulação geográfica; e reflete de forma mais fidedigna a multiplicidade de opiniões existentes na sociedade.

O dilema entre o voto distrital e o voto proporcional, portanto, não é apenas técnico, mas essencialmente político. O sistema proporcional, ao priorizar a diversidade e o pluralismo, fortalece a legitimidade do regime representativo e amplia o espectro da cidadania. Já o voto distrital, embora prometa maior proximidade entre eleitor e eleito, carrega o risco de restringir a democracia a um jogo de forças regionais e majoritárias, abrindo espaço para a concentração de poder e para a exclusão de minorias.

            Dessa forma, mais do que um simples debate sobre o sistema eleitoral, a defesa do voto proporcional é uma defesa da própria democracia pluralista, que reconhece e valoriza a complexidade de um país de dimensões continentais, desigualdades históricas e múltiplas identidades. A representatividade proporcional é o instrumento mais justo e equilibrado para garantir que o Parlamento seja o verdadeiro espelho da sociedade.

sistema

            O desafio, portanto, não está em substituir o sistema proporcional, mas em aperfeiçoá-lo continuamente, como tem sido feito com a cláusula de desempenho, o fim das coligações partidárias, a criação das federações e as regras sobre a distribuição das sobras, de modo que ele preserve as condições fundamentais da democracia representativa e assegure que o poder político continue sendo expressão legítima da vontade popular.

            *Jornalista, Analista Político e Diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP).

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