A crise nos demanda o novo
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Nos últimos 5 anos, o País foi sacudido por acirradas lutas pelo poder entre as instituições (Executivo, Judiciário, Legislativo, mídia, entre outras). Tem faltado diálogo e as relações têm sido marcadas por provas de força, que visam intimidar o outro lado.
Luciano Fazio*
Para simplificar, pense-se no presidente da República e nas recentes manifestações de 7 de setembro. Ele chama os seus às ruas contra quem dele discordar, passando a ideia de que o poder seja um instrumento de força na mão do chefe, cujas falhas só ocorreriam porque “outros” o dificultariam na atuação. Por isso, apela: ‘quem tentar me impor limites deve ser removido’ e arregimenta apoiadores contra os opositores, ao estilo intolerante do Brasil “ame-o ou deixe-o”.
Poder para quê? Para deixar ‘o homem’ trabalhar, diriam os que creem que o líder sempre saiba o que fazer e seja capaz de fazê-lo. Nessa perspectiva, o importante seria garantir o exercício da vontade do escolhido, figura carismática que, não por acaso, é chamada de ‘mito’. Um “salvador da pátria” que, sozinho, resolveria milagrosamente os problemas. É uma ideia confortante, mas autoritária e ilusória. Não há líderes solitários e infalíveis na história.
A sociedade brasileira não é tão simples. Não há apenas 1 poder e 1 líder. Há mais poderes, mais atores com atribuições específicas, cada 1 com respectivo espaço protagonista, mesmo que de âmbitos e tamanhos diferentes.
O poder é distribuído, não tem um único centro ou ator. Essa pluralidade permite mobilizar energias e pôr a sociedade em movimento. Pode dar trabalho, mas é uma fonte de oportunidades. Infelizmente, hoje, a pluralidade é negada pelo líder, que a vê como empecilho e utiliza o poder para dividir o País, levando-o à paralisia, como doente que, tomado por sua patologia, torna-se incapaz de relações com os outros.
As pessoas, as empresas, as organizações têm vida própria, mas os problemas e as oportunidades da vida social as obrigam a buscar respostas que atingem a todos. Na falta de quem dê respostas a tais necessidades e anseios, no Brasil de hoje, são buscadas saídas individuais e ficam sem solução os desafios que requerem a coordenação de vários atores.
A vida em sociedade depende de relações, que apenas às vezes são entre quem manda e quem obedece — apenas às vezes são relações de quartel.
Há também relações entre atores não subordinados que se colocam em jogo com seus recursos e capacidades, desde que enxerguem perspectivas e passem a acreditar nessas, mesmo não tendo sempre a clareza e/ou a intenção de trabalhar para um projeto comum de país.
Frequentemente, isso se dá graças a facilitadores, que dialogam com as partes, articulam iniciativas, somam forças. Nessa outra concepção, o poder não é uma varinha mágica nas mãos do líder da Nação ou uma prerrogativa de mando de segura eficácia, mas emana dos atores plurais que o atribuem ao líder, por vê-lo como grande facilitador, capaz de escuta-los, entendê-los e de dar-lhes respostas, bem como de dar conta das demandas do País.
É desse crédito que o líder-facilitador traz a sua força. No fundo, essa concepção reflete e aprofunda o ditado da Constituição “Todo poder emana do povo”. Este projeto idealista, com que me dou o direito de continuar a sonhar, convoca o despertar da sociedade e das representações para o exercício do poder não pontual, a cada 4 anos nas urnas, mas contínuo. Trata-se de poder baseado em relações entre atores, a serem construídas, mantidas e aperfeiçoadas.
A crise dessas relações caracteriza o difícil momento do País. Sem dúvida, em boa parte é causada pelo atual presidente, mas o problema não é de hoje e nem se reduz a uma pessoa.
Por isso, dizer sim ou não ao impeachment não é o cerne da questão: traz algumas vantagens, mas trocar o ‘mito’ por uma versão envernizada do mesmo não fará o Brasil acordar outro país.
Concepções e práticas de poder enraizadas na nossa sociedade carecem de superação, não garantida com a eleição de líderes da Nação portadores de outras histórias e valores. Se a estrutura ficar a mesma, mesmos também permanecerão os alicerces do poder.
(*) Matemático pela Università degli Studi de Milão/Itália, especialista em previdência pela Fundação Getúlio Vargas e autor do livro "O que é previdência do servidor público", Ed. Loyola, 2020.