Os intocáveis: por que continuamos a ser uma ‘República de Bananas’?

A evolução da história brasileira e das instituições nacionais, influenciada pela cultura lusa, preservou característica conspícua dos colonizadores: os “nobres” estavam fora do alcance da lei, e somente por autorização do rei podiam ser punidos pelos crimes que cometessem. Mesmo quando processados, frequentemente eram perdoados, ou recebiam penas brandas. Não somente tinham direito a foro privilegiado, resquício que ainda está presente, como podiam contar com a gratidão real pelos serviços prestados.

Luiz Alberto dos Santos*

luiz alberto dos santosAo mesmo tempo, vicejava, nos primórdios da colonização lusa no Brasil, a figura dos “letrados”, composta por burocracia cartorial, ineficiente e corrupta. Como explica Eduardo Bueno, na obra dele “A coroa, a cruz e a espada”, de 2016, “desembargadores, juízes, ouvidores, escrivães, meirinhos, cobradores de impostos, vedores, almoxarifes, administradores e burocratas em geral  os chamados ‘letrados’ — encontraram-se em posição sólida o bastante para instituir espécie de poder paralelo, um ‘quase Estado’”, que tratou de “articular fórmulas legais e informais para se transformar em grupo autoperpetuador, na medida em que os cargos eram passados de pai para filho, ou então para parentes e amigos próximos”.

A corrupção, além do empreguismo, era a marca: “embora recebessem altos salários, muitos burocratas engordavam os rendimentos com propinas e desvio de verbas públicas.”

O quadro atual brasileiro nos faz pensar no que permite que tais situações ainda persistam.

O que tem ocorrido no período 2019-2021 é estarrecedor. Não somente o presidente, mas os filhos e aliados, a “nobreza” bolsonarista, têm se revelado “intocável”.

Apesar de dezenas — talvez centenas — de crimes cometidos à luz do dia, ninguém foi punido. Processos foram e são rotineiramente engavetados, ou mesmo anulados, e jogadas no lixo provas irrefutáveis, coletadas com grande dificuldade.

Denúncias de crime de responsabilidade, apresentadas por atores cívicos e políticos insuspeitos, permanecem esquecidos, por falta de “clima político” para apreciação.

O Supremo Tribunal Federal, que poderia interceder, tem atuação prejudicada pela leniência e inoperância do Ministério Público Federal, cujo procurador-geral não deixa de ser grato a quem o nomeou e reconduziu ao cargo.

No STJ e TRF, são frequentes decisões que cassam liminares que poderiam colocar alguma ordem em tais abusos, como a recente decisão do presidente do TRF do Rio de Janeiro, que cassou limitar de juíza federal que mandou afastar do cargo dirigente do Iphan, após confissão pública do chefe maior, o presidente da República, de que a colocara no cargo para proteger interesses de empresário. O caso das “rachadinhas”, fartamente documentado, escândalo nacional, foi, praticamente, anulado, com o reconhecimento, indevido, de fórum privilegiado ao principal envolvido, o filho do presidente.

A Operação Lava-jato, de triste memória, iniciou e operou, por muito tempo, sob o manto da legitimidade, mas a proposta de levar corruptos, quem quer que fossem, à cadeia, e moralizar a política, teve apenas como efeito a criminalização da política.

O desrespeito ao devido processo legal e ao direito de defesa, e a incompetência dos operadores do processo para produzir justiça sem se tornarem “paladinos” e “perseguidores” de alvos pré-determinados, a confusão de interesses (inclusive pecuniários) de procuradores e até mesmo juízes, levaram à desmoralização da operação.

Instituições como o TCU, sempre atento e presente, buscando ampliar seus espaços, continuam a ser operacionalizadas e instrumentalizadas em benefício da “nobreza”. Apesar de rejeitarem as contas de Dilma Rousseff em 2016, seus membros, desde então, têm se revelado pouco dispostos a enfrentar o descalabro administrativo que se instalou desde 2019.

Recentemente, o TCU tirou da pauta, casualmente por iniciativa de um membro que foi nomeado para ser embaixador em Portugal, processo que poderia lançar luzes sobre o excesso de gastos com cartões corporativos do presidente e os parentes dele.

E chegamos, então, ao caso da covid-19. Ministros da Saúde, Capitã Cloroquina e derivados, assessores presidenciais e tantos outros, que contribuíram e contribuem para o “genocídio” provocado pelo negacionismo, incompetência, sabujice e má-fé amplamente disseminados, permanecem incólumes. A CPI da Pandemia requereu ao Ministério Público o indiciamento de 80 autoridades diversas, inclusive o presidente. Mas, desde o encerramento do inquérito, em fins de outubro, nada aconteceu.

Os “intocáveis” permanecem em nos cargos, e o chefe maior, continua a incitar sua base fanática contra agentes públicos que cumprem o seu papel, como o corpo técnico e diretores da Anvisa, que aprovaram a vacinação de menores de 5 a 10 anos, o que é fundamental para que haja a volta às aulas em 2022 com o mínimo de proteção.

Da mesma forma, nada incomoda os “intocáveis” que dilapidam o patrimônio público, fazem negociatas com verbas orçamentárias e “emendas secretas”, negociam votos e pautas legislativas sem preocupação outra que não seja o interesse próprio ou da oligarquia a que pertencem.

Os “intocáveis” sabem que, a favor dele, milita estrutura viciada, com 500 anos de experiência em terras brasileiras, cujo fim maior é lhes assegurar privilégios e manter o status quo. Vigiar e punir é regra que se aplica, sim, aos pobres, aos desajustados, aos excluídos, aos que não são “fidalgos”, não acumularam nem poder, nem riqueza.

Pobre, ao roubar uma lata de sardinha ou um iogurte em supermercado, pode esperar a prisão, a vergonha e até mesmo a morte. Se preso, a sua libertação poderá ocorrer, pois se trata de crime de pequeno potencial ofensivo, mas levará bom tempo até que isso ocorra.

Mas pesos e medidas são aplicados distintamente: recentemente, um cidadão que ameaçou de morte dirigentes da Anvisa, cometendo crime confesso e documentado, foi beneficiado com a conclusão do inquérito que considerou, sem recomendar pena alguma, que tal crime seria, igualmente, de menor gravidade. Processo arquivado.

O antigo brocardo latino, summum jus, summa injuria, ensina que a aplicação muito rigorosa da lei pode dar margem a grandes injustiças. Mas, ao contrário, a aplicação seletiva, deixando impunes e intocados os que, protegidos por laços de sangue, riqueza ou poder, cometem crimes em série, leva à conclusão de que o sistema não funciona, ou que foi construído não para promover justiça, mas, apenas, desigualdade.

Mais de 500 anos após nosso “descobrimento”, e onde nosso desenvolvimento econômico se deu à custa do sangue e da vida de milhões de indígenas, inicialmente explorados, depois escravizados, e finalmente, exterminados, e de escravos africanos, escravizados, seviciados, marginalizados e excluídos, embora libertos, permanecem a pobreza, a desigualdade e a miséria de parcela expressiva de nossa sociedade.

Mas os letrados, a “nobreza” e os que gravitam em torno do “rei”, nada têm a reclamar. Porque são eles, afinal, os “donos do poder”, como dizia Raimundo Faoro, na República de Bananas em que ainda vivemos.

(*) Consultor legislativo do Senado, advogado, mestre em Administração, doutor em ciências sociais; ex-subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil da PR (2003-2014); professor colaborador da Ebape/FGV. Sócio da Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas.

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