Títulos de dívida pública contra dolarização
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No primeiro governo Lula, foi realizada a “desdolarização” da dívida pública brasileira, cujos títulos com correção cambial representavam 1/3 dessa, em 2002. Mantiveram-se abaixo de 1% do total até 2012.
Fernando Nogueira da Costa*
Os pós-fixados (LFT) eram cerca da metade, na média anual 1999-2005, e caiu para a média anual de 21,5% nos 10 anos seguintes, chegando a ser apenas 4,5% do total em 2014. Em contrapartida, os prefixados (LTN) aumentaram nos respectivos períodos da média de 10,8% para 31% do total. Os corrigidos por índice de preços (NTN) passaram de 9,5% (1999-2004) para 24% (2005-2015).
Esses 2 últimos indexadores, demandados mais quando a taxa de juro básica está em baixa, permitem administração da dívida pública com melhor perfil de vencimentos. Os pós-fixados são demandados por investidores quando a Selic está em alta.
Nos anos imediatos pré-golpe, os títulos de dívida pública com correção cambial voltaram a crescer, para oferecer hedge (proteção cambial) ao capital estrangeiro, atingindo 12,5% em 2015. Nos anos seguintes, as participações dos 3 tipos de títulos de dívida pública ficaram mais similares, em torno de 1/4 cada qual, o restante com correção cambial (5%) e em operações compromissadas (20%).
Venda temporária de títulos públicos
As operações compromissadas envolvem a venda temporária de títulos públicos (ou privados em menor escala) com acordo para reverter (recomprar) a operação em data futura específica. Essas operações são conduzidas principalmente entre bancos comerciais, no mercado interbancário, e com o BC (Banco Central do Brasil), no mercado aberto, ou seja, em operações de open-market (mercado de títulos).
Entre 1999 e 2005, carregavam em média anual 3% do total dos títulos de dívida pública. O estoque desses se elevou de R$ 439 bilhões para R$ 1 trilhão nesse período. Em maio de 2023, atingiu R$ 7 trilhões!
A partir de 2007, com o progressivo acúmulo de reservas internacionais, para enxugar o impacto monetário da compra de dólares com pagamentos em reais, as operações compromissadas foram crescentes, passando para a média de 21% do total da DPMFi (Dívida Pública Mobiliária Federal interna) no período 2007-2018. No período de retrocesso econômico-financeiro (2019-2022), caiu para a média anual de 17% do total.
Nas operações compromissadas de compra, o Banco Central compra títulos de banco comercial ou de outra instituição financeira com o acordo de vender esses títulos de volta em data futura pré-determinada. Acima de 1 mês, foram em média 18,7% do estoque de DPMFi no período 2007-2018. A partir da pandemia, caíram até 2%. As operações em até 1 mês aumentaram de 1,8% (2007-2019) para 13,5% (2020-2023).
Excesso de liquidez
Essa compra é feita pelo Banco Central para retirar, temporariamente, o excesso de liquidez do sistema financeiro e controlar as taxas de juros de curto prazo, colocando o juro-mercado no patamar do juro-meta anunciado. Imagina assim reduzir a quantidade de dinheiro em circulação e, por meio de recessão, diminuir a pressão inflacionária.
As operações compromissadas oferecem oportunidades para os participantes do mercado financeiro obterem retorno e liquidez em títulos públicos com risco soberano, garantido pelo Tesouro Nacional, acima de investimentos em dólares como na vizinha Argentina. Quando os agentes econômicos dolarizam sua reserva de valor, a economia fica ameaçada de hiperinflação pela disparada da cotação dessa moeda estrangeira no mercado paralelo, devido à fuga de capital do mercado financeiro formal.
O FMI considera os títulos na carteira livre do BC para fazer operações compromissadas como parte da dívida pública, embora esses não estejam em poder do mercado. Por isso, projeta a DBGG do Brasil em 2023 será 88,4% do PIB – e não 73,6% conforme o BCB. Essa questão contábil está relacionada ao conceito de dívida pública de cada qual.
O FMI utiliza metodologia específica para calcular e comparar a dívida pública de diferentes países. De acordo com essa, os títulos mantidos na carteira livre do Banco Central representam compromisso de pagamento do governo.
Embora esses títulos não estarem em circulação no mercado e sejam, de fato, detidos pelo próprio Banco Central, eles ainda representam uma obrigação de pagamento futura do governo brasileiro. Afinal, em algum momento, o Banco Central poderá vender esses títulos para bancos e outras instituições financeiras.
Assim, do ponto de vista contábil e estatístico do FMI, seria uma maneira de medir o total dos compromissos financeiros do governo, independentemente de esses títulos estarem ou não em circulação no momento da análise. Essa abordagem visa fornecer visão abrangente da posição financeira do governo do país e garantir a comparabilidade dos dados entre diferentes nações. O FMI busca padronizar essas métricas para o monitoramento e a análise da situação fiscal dos países membros.
Interdependência
É mais 1 elemento para demonstrar a interdependência – e não a independência do Banco Central do Brasil – perante o Tesouro Nacional. A Caixa Única também demonstra.
Opera como mecanismo de centralização de recursos financeiros do governo federal. Visa aperfeiçoar a gestão e a execução das operações financeiras do Tesouro Nacional e de outras entidades da Administração Pública federal.
A dinâmica de funcionamento entre a Caixa Única do BC e o Tesouro Nacional pode ser resumida nos seguintes passos. O governo federal arrecada receitas de diversas fontes, como impostos, taxas, contribuições e receitas de operações financeiras. Ao mesmo tempo, realiza despesas públicas para custear serviços, programas, investimentos e outras obrigações governamentais.
Todas as receitas do governo federal são centralizadas na Conta Única, mantida pelo Tesouro Nacional no Banco Central, ou seja, todas as entradas financeiras do governo são depositadas nessa conta. Em contrapartida, todas as despesas do governo federal são executadas a partir desta. Quando o Tesouro Nacional precisa fazer pagamentos, como salários de servidores, transferências para estados e municípios, aquisições de bens e serviços ou pagamento de juros e amortizações da dívida pública, os recursos necessários são retirados da Caixa Única.
Gestão dos saldos do Caixa Único
O BC é responsável por gerenciar os saldos do Caixa Único, assegurando haver recursos suficientes para atender às obrigações de pagamento do governo. A gestão desses saldos também envolve a alocação de recursos excedentes em aplicações financeiras seguras e de curto prazo para obter retorno financeiro.
Portanto, a centralização dos recursos no Caixa Único facilita a transparência e o controle da execução orçamentária do governo federal. Todas as movimentações de receitas e despesas são registradas e monitoradas em único local.
As receitas provenientes das reservas cambiais do Brasil, porém, não são alocadas diretamente no Caixa Único do Banco Central nem são pagas diretamente ao Tesouro Nacional. As reservas cambiais do País são ativos financeiros mantidos em moeda estrangeira e são administradas pela Autoridade Monetária brasileira.
A forma como as receitas das reservas cambiais é tratada e utilizadas é diferente do fluxo de receitas e despesas do governo federal centralizadas no Caixa Único. Quando o BC obtém lucros com as reservas cambiais, isso geralmente ocorre por meio de ganhos com a apreciação das moedas estrangeiras em relação à moeda nacional (real) ou com as aplicações financeiras dos recursos das reservas. Esse lucro é registrado pelo Banco Central e compõe seu resultado financeiro.
Operacionalmente autônoma
Essa passou a ser instituição financeira operacionalmente autônoma, mas não financeiramente. Como forma de receita extraordinária, a transferência do lucro obtido com as reservas cambiais ocorre de acordo com a legislação vigente e com critérios estabelecidos entre o Banco Central e o Tesouro. É uma forma de contribuir para o orçamento público e apoiar as finanças do governo.
O objetivo principal das reservas cambiais é garantir a estabilidade da taxa de câmbio e a capacidade de lidar com choques externos, assegurando a capacidade de o País honrar as obrigações em moeda estrangeira e preservar a confiança dos mercados internacionais. A gestão das reservas cambiais, assim como dos títulos de dívida pública, é realizada de maneira alinhada com os objetivos de política monetária.
A política monetária é um dos principais instrumentos utilizados pelo Banco Central para influenciar a economia do País, controlando menos a oferta de moeda e mais a taxa de juros.
Existem diversos mecanismos de transmissão da política monetária, ou seja, canais por meio dos quais as ações do BC afetam a economia real: despesas financeiras perante o lucro operacional; expectativa do ritmo inflacionário; custo do crédito para consumidores e investidores; custo de oportunidade de aplicações financeiras para rentistas; efeito riqueza da (des)valorização de outros ativos como ações e imóveis; (dis)paridade entre juro interno e juro internacional reguladora da taxa de câmbio.
A questão-chave é: o Brasil não se dolarizou, como a Argentina, porque ofereceu riqueza financeira rentável, líquida e mais segura diante da especulação com o dólar?
(*) Professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Ex-vice-presidente da Caixa Econômica Federal (2003-2007). Publicado originalmente no portal RED (Rede Estação Democrática).