Viabilidade do equilíbrio atuarial dos RPPS
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A legislação brasileira exige que a Previdência Social pública, ou seja, os RPPS (regimes próprios de Previdência Social) e o RGPS (Regime Geral de Previdência Social) sejam geridos “observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial”, conforme disposto nos caputs dos artigos 40 e 201 da Constituição.
Luciano Fazio*
Este artigo mostra que a exigência do equilíbrio atuarial do RPPS tem significado a adoção do regime financeiro de capitalização, mesmo que o texto constitucional não seja explícito a esse respeito.
Essa operação é extremamente onerosa para o ente federativo instituidor e, em muitos casos, inexequível. Assim, seria oportuno rever essa exigência e substituí-la por outra norma mais viável para assegurar a sustentabilidade em médio e longo prazos desses sistemas previdenciários.
Sustentabilidade da PS e equilibro financeiro e atuarial
Na Administração Pública brasileira, prevalece o entendimento de que somente há equilíbrio quando as despesas previdenciárias são custeadas pelas receitas provenientes das contribuições de segurados e empregadores, bem como por eventuais fundos financeiros, sem requerer aportes adicionais do ente responsável, previstos nos chamados “planos de amortização” do déficit.
Para a maioria dos leigos, incluindo grande parte dos membros do Poder Legislativo, por equilíbrio financeiro entende-se a ausência de déficit no curto prazo, enquanto o equilíbrio atuarial significa a ausência de déficit no longo prazo. Embora essa visão não seja incorreta, é insuficiente.
Sob perspectiva técnica, o equilíbrio atuarial vai além dessa interpretação genérica de sustentabilidade. Esse exige que o Sistema Previdenciário possua reservas financeiras suficientes para cobrir todas as prestações futuras dos segurados — tanto dos aposentados quanto dos ainda em atividade —, considerando as contribuições futuras e os rendimentos dos investimentos do patrimônio acumulado.
Essas reservas precisam ser integralizadas até a data de concessão do benefício. Assim, embora a Constituição não estabeleça de forma explícita qual regime financeiro1 deve ser adotado nos sistemas de Previdência Social pública, pode-se deduzir a obrigatoriedade do regime financeiro de capitalização coletiva2.
De fato, a grande alternativa para o custeio dos RPPS e do RGPS é constituída pelo regime financeiro de repartição simples (também chamado de regime orçamentário)3, que é desenhado com o objetivo de garantir receitas suficientes para o pagamento das despesas do exercício, ou seja, para o curto prazo, não formando reservas para o pagamento dos exercícios futuros. Esses entendimentos são respaldados pelo Ministério da Previdência e pelos tribunais de contas, que fiscalizam os estados e municípios e que exigem planos de amortização dos déficits atuariais dos RPPS.
A obtenção de equilíbrio atuarial é forma de garantir a sustentabilidade da Previdência Pública em médio e longo prazos, mas não é a única alternativa. A Constituição prevê modalidades de mais fácil implementação, como os fundos de aprovisionamento. Veja-se:
Art. 249 da Constituição Federal. Com o objetivo de assegurar recursos para o pagamento de proventos de aposentadoria e pensões concedidas aos respectivos servidores e seus dependentes, em adição aos recursos dos respectivos tesouros, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão constituir fundos integrados pelos recursos provenientes de contribuições e por bens, direitos e ativos de qualquer natureza, mediante lei que disporá sobre a natureza e a administração desses fundos.
Esses fundos asseguram os benefícios previdenciários futuros de maneira menos rígida e onerosa em comparação com a adoção do regime de capitalização coletiva. Isso ocorre porque o artigo 249 da Constituição não estabelece saldo obrigatório a ser alcançado pelos fundos, deixando essa definição a cargo do ente federativo responsável. Por exemplo, poderia se formar 1 fundo com o saldo equivalente a 10 anos de pagamentos futuros de aposentados e pensionistas. Esse montante seria significativamente menor do que o necessário para garantir a cobertura integral de todas as prestações futuras dos servidores ativos e inativos.
O artigo 249 foi introduzido pela EC (Emenda à Constituição) 20/98, que também passou a exigir o equilíbrio atuarial dos RPPS. Observe-se que o fundo de aprovisionamento faz sentido em RPPS operado sob o regime orçamentário, mas não no regime de capitalização, que já prevê o pré-financiamento de todos os benefícios futuros.
Nesse contexto, o artigo 249 da Constituição parece permitir que os regimes próprios continuem operando em regime de repartição simples, prática que a União vem adotando para o RPPS dos servidores civis e o RGPS.
Essa situação gera aparente contradição com a obrigatoriedade do regime de capitalização prevista no caput do artigo 40 da Constituição. Trata-se de questão pouco clara no texto constitucional, o que abre espaço para que os RPPS subnacionais reavaliem, com mais liberdade, a escolha do regime financeiro.
Debate sobre equilíbrio atuarial dos RPPS
Passadas mais de 3 décadas desde a EC 20, a maioria dos RPPS estaduais e municipais enfrenta déficits financeiros e atuariais elevados e maiores do que em 1998, apesar de várias reformas previdenciárias que dificultaram o acesso aos benefícios, reduziram o valor desses e aumentaram as contribuições dos segurados. Em particular, o déficit atuarial complexivo dos RPPS municipais, é da ordem de R$ 1,1 trilhão, de acordo com a CNM (Confederação Nacional dos Municípios)4.
Para entender essa situação, considere-se o RPPS municipal da capital do Paraná, que não se apresenta como exceção. Em 31 de dezembro de 2022, esse apresentava as seguintes condições:
• Alíquotas contributivas: servidores (14%) e município (28%);
• 26 mil servidores ativos com remuneração média mensal de R$ 5,7 mil, gerando uma folha de pagamento de R$ 147 milhões;
• 20 mil aposentados e pensionistas com proventos médios de R$ 6,5 mil, somando R$ 128 milhões em benefícios mensais; e
• Contribuições mensais de R$ 61,74 milhões (42% da folha de ativos), menos da metade do necessário para cobrir os benefícios.
Como para os demais RPPS, o desequilíbrio financeiro do Regime Próprio de Curitiba resulta, sobretudo, do baixo número de servidores ativos em relação aos inativos e da disparidade entre as remunerações médias. O déficit financeiro em 2022 teria sido evitado, elevando para 53,5 mil o número de servidores ativos ou dobrando a remuneração mensal média dos 26 mil servidores em atividade.
Além disso, apesar de operar há anos sob o regime de capitalização coletiva, o RPPS de Curitiba apresentava, ao final de 2022, déficit atuarial de R$ 17 bilhões, tendo passivo atuarial de R$ 19 bilhões contra patrimônio de cobertura de R$ 1,7 bilhão.
Em RPPS até então operado em repartição simples, a implantação do regime de capitalização significa que, ao longo de 35 anos, equivalente à 1 geração de servidores, é necessário financiar simultaneamente 2 previdências. Além de ter de pagar os já aposentados (a ‘geração passada’ para quem não houve pré-financiamento), o Regime Próprio deve também custear antecipadamente a Previdência dos servidores em atividade (a ‘geração atual’), para que esses cheguem à data da aposentadoria contando com reserva financeira capaz de cobrir todas as prestações futuras. A difícil transição para a Previdência capitalizada pode ser resumida pelo jargão “pague 2 (previdências) e leve 1”.
Para obter o equilíbrio de RPPS atuarialmente deficitário, a medida padrão adotada por estados e municípios é a implantação de “planos de amortização”, ou seja, de programas dispostos na legislação local, que estabelecem o pagamento parcelado e multianual da dívida do ente federativo com o RPPS.
Normas federais fixam o prazo máximo admitido para os planos de amortização do déficit atuarial do RPPS, em geral de 35 anos5. Entretanto, frequentemente o cumprimento dos planos de amortização tem sido inviável por parte dos entes federativos subnacionais, provocando prorrogações ou postergações, que adiam a transição para o regime de capitalização por parte dos RPPS.
A EC 103/19, conhecida como a Reforma da Previdência do governo Bolsonaro, entre outras disposições, modificou o artigo 195 da Constituição, estabelecendo limite máximo de 60 meses para o parcelamento de novos débitos previdenciários. Essa medida buscou acelerar o processo de equacionamento do déficit atuarial dos regimes próprios.
No entanto, sensível às pressões dos municípios, o Congresso vem flexibilizando esse limite de 60 meses. Atualmente, tramita em Brasília a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 66/23, que permite o fracionamento dos pagamentos da dívida municipal para com seu RPPS, inclusive relativamente a velhos débitos, em até 300 parcelas ou no limite de 1% da média da receita corrente líquida anual do município. Já aprovada no Senado, a proposta encontra-se em análise na Câmara dos Deputados.
A PEC 66 responde à dificuldade real dos entes federativos, mas não enfrenta a raiz dessa: a generalizada inexequibilidade do equilíbrio atuarial dos RPPS municipais. A medida limita-se a postergar a solução do problema, reproduzindo as práticas protelatórias que têm caracterizado as leis municipais nos últimos anos.
Em suas articulações no Congresso, a CNM defende também que a PEC 66 obrigue os RPPS municipais a adotarem as mesmas regras de benefícios aplicáveis aos servidores civis vinculados ao RPPS da União. De novo, tal alteração dos direitos dos segurados não soluciona o déficit atuarial desses RPPS, que geralmente sofre redução da ordem de 10% a 15%. Isso evidencia que as regras de benefícios não constituem a causa vital do desequilíbrio dos RPPS.
O elemento central das dificuldades dos RPPS subnacionais permanece sendo a viabilidade da exigência do equilíbrio atuarial, questão que, no âmbito legislativo, se transformou em espécie de tabu, raramente contestada ou debatida de forma aprofundada.
Para aqueles que consideram escandaloso o questionamento da exigência de equilíbrio atuarial da Previdência Social pública, é importante destacar a disparidade no tratamento dessa exigência entre os sistemas subnacionais e os nacionais. Na prática, hoje, apenas os RPPS estaduais e municipais devem implementar medidas efetivas para zerar o déficit atuarial. De fato, a União não tem planos de amortização dos déficits atuariais do RPPS de seus servidores civis, que alcançou R$ 1,5 trilhão em 2023, e do RGPS, cujo déficit atingiu R$ 11,8 trilhões.
Conclusão
Além da escassa clareza da Constituição acerca da obrigatoriedade de os RPPS adotarem o regime financeiro de capitalização, há também os expressivos déficits atuariais dos regimes próprios, decorrentes de falta de capacidade financeira dos entes federativos instituidores.
Diante desse quadro, cabe rediscutir o modelo constitucional de sustentabilidade a médio e longo prazo dos RPPS de estados e municípios. Em particular, é oportuno considerar a substituição da exigência de equilíbrio atuarial — que requer a implantação bem-sucedida do regime financeiro de capitalização — por critérios mais factíveis e alinhados à realidade financeira dos entes federativos.
Alternativa a ser considerada seria a expressa autorização para que os RPPS operem em regime orçamentário, mas complementada pela obrigatoriedade de instituir um fundo de aprovisionamento destinado à garantia os benefícios previdenciários futuros, em adição à responsabilidade do tesouro do ente federativo. Para assegurar efetivamente a sustentabilidade do RPPS no médio e longo prazo, esse fundo deveria contar com uma meta definida de saldo financeiro a ser alcançado dentro de prazo determinado.
(*) Matemático pela Università degli Studi de Milão e pós-graduado em Previdência Social e Gestão de Fundos de Pensão (FGV). Trabalha com consultoria e formação nas áreas de economia e Previdência. Consultor do Dieese para assuntos previdenciários. Autor dos livros “O que é Previdência Social”, Loyola, 2016, e “O que é Previdência do Servidor Público”, Loyola 2020.
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1 O regime financeiro é o mecanismo que indica como as fontes de receita (no caso analisado, principalmente as contribuições) financiam as obrigações (no caso, sobretudo os benefícios).
2 Esse regime é caracterizado pelo pré-financiamento dos benefícios, ou seja, pela formação de reservas financeiras, obtidas por meio de contribuições e de sua aplicação financeira. Até a data da concessão do benefício, essas reservas devem ser suficientes para assegurar o pagamento de todas as prestações futuras devidas. Na Previdência Social pública brasileira, a adoção do regime financeiro de capitalização não significa a perda do caráter solidário: os benefícios são financiados por um único fundo financeiro mutualista e são calculados com base em disposições legais, e não com base nos saldos de contas individuais, que, nesse contexto, não existem.
3 O regime financeiro de repartição simples é aquele em que, a cada período, as contribuições arrecadadas visam custear integralmente os benefícios concedidos. Como as contribuições incidem principalmente sobre as remunerações dos segurados em atividade (‘geração atual’) e pagam os proventos de aposentados e pensionistas (‘geração passada’), se diz que esse regime financeiro implica um “pacto de gerações”.
4 Ver a matéria “Especialistas da CNM alertam sobre situação previdenciária dos Municípios” disponível em https://cnm.org.br/comunicacao/noticias/especialistas-da-cnm-alertam-sobre-situacao-previdenciaria-dos-municipios. Acesso em 15/11/24.
5 A Portaria MPS 403/08 fixou o prazo máximo de amortização do déficit atuarial em 35 anos. Hoje, a matéria é regulada pela Portaria MPT 1.467/22 que, embora tenha acrescido outras opções de cálculo desse prazo, mantém os 35 anos como principal referência temporal.