Para além da liberdade privada
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Nestes últimos dias, o governo italiano tomou medidas controversas, incluindo a anulação das multas aplicadas aos chamados “no vax”, indivíduos que se recusaram a vacinar-se contra a covid-19, a requisição obrigatória para impedir greves no setor de transportes e restrições às manifestações de rua.
Luciano Fazio*
Essas decisões refletem reinterpretação retrógrada do significado da liberdade.
De acordo com o dicionário, a liberdade é a “possibilidade de o sujeito agir (ou não agir) sem coerções externas e de se autodeterminar, escolhendo autonomamente os fins e os meios para alcançá-los”.
Essa definição associa a liberdade à “esfera privada”, garantia do indivíduo contra limitações geralmente impostas pelo Estado. Embora a História confirme o risco do despotismo estatal, quando absoluta, essa liberdade ‘privada’ é ilusória e pode até ser perigosa.
Analisada de perto, a ideia de liberdade absoluta não se sustenta. As restrições à liberdade não são impostas apenas pelas leis, mas também pela natureza e pela realidade socioeconômica.
A falta de limites externos não assegura a plena realização dos desejos individuais, até porque a própria liberdade de escolha implica renúncias e perdas. Ou seja, revela-se ingênua a crença em sujeito totalmente “livre”, idealizado como espécie de herói capaz de tudo.
Ademais, a absolutização da liberdade privada ignora que o homem é, por natureza, “ser político”, cujas ações afetam os outros.
Frequentemente, isso resulta em condutas pouco éticas. Em particular, os “no vax” ignoram que seus corpos podem causar sofrimento e até morte a outras pessoas, mesmo de forma involuntária.
A ação “livre” de alguns, sobretudo se dotados de mais poder e riqueza, pode comprometer a igualdade mínima, que prejudica o acesso dos vulneráveis aos direitos fundamentais, como vida, saúde, educação, trabalho e assistência.
Para estabelecer limites à liberdade privada, surge a liberdade ‘pública’, que não a substitui, mas a complementa. Geralmente desconsiderada nos dicionários, essa segunda forma de liberdade é fundamental para estabelecer, de forma participativa, as normas que regem a vida coletiva.
Tais normas devem, ao mesmo tempo, proteger e regulamentar a liberdade privada.
A liberdade pública reconhece a diversidade de opiniões e interesses entre indivíduos e grupos, legitimando os possíveis conflitos no processo de organização da sociedade. Em vez de serem negados, esses conflitos devem ser explicitados e enfrentados, buscando soluções que contemplem, na medida do possível, os interesses de sociedade plural e diversificada.
Nesse contexto, devem ser aceitos também os protestos em praça pública e as greves, que o atual governo italiano pretende restringir. Esses também são expressões de liberdade, ressoando a célebre frase: “liberdade é participação”. Proibi-los representaria grave ataque às liberdades democráticas.
Mais de 200 anos após a Revolução Francesa, a busca pelo equilíbrio entre liberdade e igualdade, assim como entre liberdade privada e liberdade pública, permanece essencial.
Como já advertia Hobbes, a ausência de regulamentação adequada da liberdade privada tende a levar à “lei da selva”, ou a situações em que “o homem é o lobo do outro homem”, como ele dizia.
Como solução, o filósofo inglês defendia o poder absoluto do rei. Hoje, tanto na Itália, quanto no Brasil, o caminho está na liberdade pública, indispensável para a democracia e a construção de sociedade mais justa.
(*) Matemático pela Università degli Studi de Milão (Itália) e pós-graduado em Previdência pela FGV.