Por um Dia da Memória não meramente protocolar
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O dia 27 de janeiro, Dia da Memória do Holocausto, recorda as vítimas dos campos de extermínio nazistas: principalmente judeus, ciganos, homossexuais e comunistas. O racismo, os preconceitos de natureza sexual e a intolerância ideológica criaram essas máquinas de morte.
Luciano Fazio*
Além de homenagear às vítimas dessas atrocidades, esta data nos questiona também sobre como tudo isso foi possível. De certo, nessa desumanidade sistemática há também responsabilidade coletiva, que abrange até mesmo quem não “sujou as mãos” diretamente.
Logo após a libertação, as forças aliadas, horrorizadas pela omissão generalizada do povo alemão, frequentemente obrigaram os civis a visitarem os campos nazistas para que conhecessem os crimes nazistas, enterrassem os cadáveres dos prisioneiros mortos e ajudassem os sobreviventes.
As visitas serviram para desmontar a propaganda nazista, que minimizava ou ocultava as atrocidades do regime, que os alemães que haviam apoiado ou tolerado, impedindo-lhes de negar a realidade ou se dissociar com as desculpas: “Não fui eu” ou “Nem sequer sabia”.
Hoje, é fácil condenar as atrocidades do regime de Hitler há 80 anos, por 3 razões:
1. Criticar os outros é menos penoso do que fazer autocrítica por nossos atos;
2. É simples “chutar cachorro morto”. Os nazistas perderam a guerra e não têm praticamente mais defensores; e
3. São “águas passadas” (ou seja, aparentemente sem relação com os fatos de hoje).
Desse modo, em geral, a crítica dos campos nazistas custa pouco: pois não obriga a pôr fim às atuais atrocidades.
Pelo contrário, o grande risco é que a história se repita. Eis que o significado profundo do Dia da Memória vai além da justa condenação do nazismo e da necessária solidariedade com as vítimas do Holocausto.
Implica também o combate a todos os crimes de hoje contra a humanidade e os direitos humanos, incluindo os das grandes potências e seus aliados. Tal significado pode ser resumido no lema “Atrocidades nunca mais”.
Para ilustrar melhor, aqui estão alguns exemplos atuais que negam o Dia da Memória:
• A deportação ilegal de milhares de crianças de áreas ocupadas da Ucrânia para a Rússia, durante o conflito iniciado em 2022. Esse crime causou a ordem de prisão do presidente Putin por parte do Tribunal Penal Internacional.
• A prática de os Estados Unidos deportar supostos terroristas para a base militar de Guantánamo, onde ficam presos por tempo indeterminado, sem julgamento e sem direitos, se aproveitando de o fato de ser terra que permite arbítrios, por estar fora do território dos EUA e não se aplicando as leis do país.
• O financiamento e o armamento por parte de vários governos italianos de milícias no Norte da África para que impeçam migrantes vindos da África e da Ásia de chegarem à Europa e — sem terem cometido crime algum — sejam mantidos em prisões, submetidos à torturas e abusos.
• A recente soltura do general líbio Al-Masri, preso em Turim (Itália) a pedido do Tribunal Penal Internacional por torturas e violações dos direitos humanos nos campos de detenção de migrantes na Líbia. A liberação se deu por decisão do governo de Giorgia Meloni, que descumpriu suas obrigações com a justiça internacional.
• As práticas israelenses de perseguições e massacres de palestinos na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Os ataques militares deliberados a alvos civis, inclusive, provocaram a ordem de prisão do primeiro-ministro Netanyahu por parte do Tribunal Penal Internacional.
Quando não se traduz em real compromisso com o princípio “Atrocidades nunca mais”, o Dia da Memória se torna cerimônia burocrática e, sejamos francos, um pouco hipócrita.
Tal falta de compromisso, hoje como ontem, não é apenas dos governantes. Com relação à Alemanha nazista, 2 perguntas não querem calar:
“Por que os alemães não se opuseram e denunciaram os crimes de Estado?”
“Qual o motivo da omissão e da conivência deles?”.
As mesmas perguntas valem hoje diante das atrocidades atuais – sobretudo para os cidadãos que não vivem sob ditadura.
Considerando que a omissão implica corresponsabilidade, o Dia da Memória nos interpela pessoalmente: “O que eu, pessoa comum, estou fazendo para impedir as atrocidades de hoje?”.
(*) Matemático pela Università degli Studi de Milão (Itália) e pós-graduado em Previdência pela FGV.