O presente artigo está dividido em três partes. A primeira apresenta os termos do atual debate no Congresso Nacional sobre a Proposta de Emenda à Constituição nº 66/2023 (PEC 66), no que se refere à adequação das regras de benefícios do RPPS municipal às normas vigentes no RPPS da União.
 
A segunda subsidia a análise do texto em discussão, com vistas à formulação de emendas parlamentares. A terceira trata das alterações legislativas que deverão ser promovidas pelo município que desejar usufruir da nova possibilidade de parcelamento de suas dívidas com o respectivo Regime Próprio, na hipótese de aprovação da PEC 66.
 
O estado da discussão da PEC 66 na Câmara dos Deputados
A PEC 66, já aprovada no Senado e atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, estabelece como condição para novo parcelamento de débitos dos municípios com seus Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) a adoção de regras previdenciárias — tanto de elegibilidade quanto de cálculo das aposentadorias — que sejam “assemelhadas” às aplicáveis aos servidores vinculados ao RPPS da União. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados não admitiu a adoção compulsória das mesmas regras de benefícios previdenciários dos servidores federais de cargo efetivo. Além disso, a proposta de alteração da Constituição condiciona o parcelamento das dívidas à adesão ao Programa de Regularidade Previdenciária do Ministério da Previdência Social (MPS).
 
A redação da PEC em análise na Câmara dos Deputados prevê nova formulação do artigo 115 das Disposições Transitórias da Constituição Federal (DTCF), nos seguintes termos:
 
“Art. 115. Fica excepcionalmente autorizado o parcelamento das contribuições previdenciárias e dos demais débitos dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, com os respectivos regimes próprios de previdência social, com vencimento até a data da promulgação desta Emenda Constitucional, inclusive os parcelados anteriormente, no prazo máximo de 300 (trezentas) prestações mensais, mediante autorização em lei municipal específica, desde que comprovem, em até 15 (quinze) meses após a data da promulgação desta Emenda Constitucional, ter aderido ao Programa de Regularidade Previdenciária junto ao Ministério da Previdência Social e alterado a legislação do regime próprio de previdência social para atendimento das seguintes condições, cumulativamente:
 
I – Adoção de regras de elegibilidade, de cálculo e de reajustamento dos benefícios que contemplem, nos termos previstos nos incisos I e III do § 1º e nos §§ 3º a 5º, 7º e 8º do art. 40 da Constituição Federal, regras assemelhadas às aplicáveis aos servidores públicos do regime próprio de previdência social da União e que contribuam efetivamente para o atingimento e a manutenção do equilíbrio financeiro e atuarial;
II – Adequação do rol de benefícios ao disposto nos §§ 2º e 3º do art. 9º da Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019;
III – Adequação da alíquota de contribuição devida pelos servidores, nos termos do § 4º do art. 9º da Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019; e
IV – Instituição do regime de previdência complementar e adequação do órgão ou entidade gestora do regime próprio de previdência social, nos termos do § 6º do art.
 
9º da Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019.
§1º. Ato do Ministério da Previdência Social, no âmbito de suas competências, definirá os critérios para o parcelamento previsto neste artigo, inclusive quanto ao cumprimento do disposto nos incisos I, II, III e IV do caput deste artigo e à adesão ao Programa de Regularidade Previdenciária, que contemplará prazos e condições diferenciadas para o cumprimento das exigências do Certificado de Regularidade Previdenciária e para a busca do equilíbrio financeiro e atuarial dos regimes próprios, bem como disponibilizará as informações aos Municípios sobre o montante das dívidas, as formas de parcelamento, os juros e os encargos incidentes, de modo a possibilitar o acompanhamento da evolução desses débitos.”
 
Observações para a discussão da PEC 66
I – O inciso I do artigo 115 das DTCF repropõe, com novo prazo de até 300 meses, o parcelamento já disposto na Emenda Constitucional nº 113/2021 (EC 113), condicionando-o novamente à adoção de “regras assemelhadas”, expressão que, embora imprecisa, indica que não se exige do município a adoção de normas idênticas às da União nas seguintes matérias:
 
– A concessão e manutenção da aposentadoria por incapacidade permanente ao trabalho, caso a readaptação do segurado for impossível e assim permanecendo nas reavaliações periódicas, como disposto no inciso I do § 1º do artigo 40 da CF;
– As idades mínimas de 62 e 65 anos, para mulheres e homens, respectivamente, como pré-requisito da concessão da aposentadoria voluntária no âmbito do RPPS da União, conforme disposto no inciso III do § 1º do artigo 40 da CF;
– As regras de cálculo dos proventos de aposentadoria [1] a serem estabelecidas em lei do respectivo ente federativo, conforme § 3º do artigo 40 da CF, no caso do RPPS da União são dispostas no artigo 26 da EC 103;
– O requisito de idade mínima para a aposentadoria voluntária reduzido em cinco anos para os professores que comprovem tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio, como disposto no § 5º do artigo 40 da CF;
– O salário-mínimo como piso obrigatório da pensão por morte, quando for a única fonte de renda formal do dependente, de acordo com o § 7º do artigo 40 da CF;
– O reajustamento periódico dos benefícios para preservar-lhes o valor real, conforme disposto no § 8º do artigo 40 da CF.
 
Com relação às novas idades mínimas e às fórmulas de cálculo das aposentadorias, as únicas exigências já não obrigatórias para o RPPS do ente federativo subnacional entre as previstas nos incisos do caput do artigo 115 das DTCF, a expressão “regras assemelhadas” permite certa flexibilidade ao município no ajuste de sua legislação previdenciária. Por outro lado, o texto da PEC 66, como já a EC 113, atribui ao MPS a competência para definir, posteriormente, os critérios para caracterizar essa “assemelhação”. Tal delegação normativa, sem delimitação clara, suscita preocupações quanto à segurança jurídica e, sobretudo, à autonomia do ente federativo subnacional prevista na Constituição.
 
II – De forma inédita, a PEC 66, por meio da alteração do § 1º do artigo 115 das DTCF, condiciona o novo parcelamento das dívidas do município “à adesão ao Programa de Regularidade Previdenciária, que contemplará prazos e condições diferenciadas para o cumprimento das exigências do Certificado de Regularidade Previdenciária”. O conteúdo normativo do referido programa, entretanto, ainda não está oficialmente definido. Evidentemente, essa disposição, que fere a boa técnica legislativa, delega mais elementos fundamentais do “contrato federativo” proposto ao município a definições futuras e unilaterais do Poder Executivo federal.
 
Assim, a redação atualmente em discussão da PEC 66 implica na renúncia do município à possibilidade de avaliar previamente — ou mesmo de negociar — os termos desse “contrato”, aceitando acriticamente a transferência de parte de suas competências legislativas para a União. Diante disso, recomenda-se a apresentação de emendas à PEC 66 que limitem ou eliminem a prerrogativa do MPS de estabelecer critérios vinculantes e condicionantes para o parcelamento de débitos.
 
Observe-se, ainda, que a adoção, no RPPS municipal, de regras semelhantes às vigentes no RPPS da União não é abrangente, permanecendo diferenças relevantes.
Os servidores federais contribuem para sua previdência social por meio de alíquotas progressivas, que, na prática, resultam em contribuições inferiores às atualmente exigidas dos servidores municipais, submetidos, em geral, à alíquota única de 14,0%, em consequência do previsto nos §§ 4º e 5º do artigo 9º da Emenda Constitucional nº 103.
 
Ademais, diferentemente do que ocorre nos RPPS subnacionais — e em desconformidade com o comando constitucional pelo qual “O regime próprio de previdência social dos servidores titulares de cargos efetivos terá caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente federativo, de servidores ativos, de aposentados e de pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial” (ver o caput do artigo 40 da CF) —, não há, até o momento, uma lei federal específica que discipline a amortização do déficit atuarial do RPPS dos servidores civis federais.
 
Essas diferenças evidenciam que a convergência de regras proposta pela PEC 66 entre o RPPS da União e os RPPS municipais possui caráter assimétrico, pois impõe aos municípios a adequação a normas aplicáveis aos servidores federais quando estas são mais onerosas do que aquelas vigentes no RPPS municipal, mas não quando são mais vantajosas.
 
Diante dessa parcialidade, justifica-se a adoção, no RPPS municipal, de regras de benefícios semelhantes às do RPPS da União, mas menos onerosas para os servidores.
 
Para adequação da legislação municipal à PEC 66
Supondo que a PEC 66 venha a ser aprovada pelo Congresso Nacional nos termos deliberados na CCJ da Câmara dos Deputados, caberá ao município proceder à adequação de sua legislação, para fazer jus ao novo parcelamento de débitos com seu Regime Próprio.
 
A esse respeito, com vistas à defesa dos interesses dos servidores, é fundamental atentar para o contexto político e institucional em que se insere a PEC 66. Com efeito, na alteração da lei previdenciária local, muitos prefeitos tenderão a priorizar a redução de despesas, adotando as normas da União de forma restritiva e automática, em detrimento da análise das peculiaridades locais e da proteção dos interesses dos servidores.
 
Para agravar esse quadro, a legislação dos RPPS municipais está sujeita à avaliação dos Tribunais de Contas dos Estados (TCEs), destacando-se, em alguns casos, a interpretação enviesada desses órgãos no sentido de que as regras de benefícios dos regimes municipais devem seguir os mesmos parâmetros estabelecidos para os servidores federais — mesmo na ausência de comando legal expresso que imponha tal equiparação [2]. Esse entendimento tenderá a se tornar ainda mais frequente e
 
incisivo após a eventual aprovação da PEC 66.
Diante desse contexto, recomenda-se cautela aos representantes dos servidores públicos no âmbito legislativo. Em vez da oposição frontal às novas idades mínimas introduzidas pela Emenda Constitucional nº 103/2019 (EC 103), é aconselhável a adoção graduada e adaptada dessas idades, com vistas a garantir a sustentabilidade atuarial e – ao mesmo tempo – evitar alterações radicais e abruptas. Por exemplo, pode-se adotar as idades mínimas de aposentadoria previstas na EC 103, mas prever sua implantação por etapas, para suavizar o impacto sobre os servidores em atividade.
 
Quanto ao cálculo dos benefícios, em conformidade com o critério de “assemelhação”, pode ser adotado o mesmo modelo da EC 103, mas utilizando parâmetros diferentes que evitem perdas excessivas para os segurados.
 
Entre as medidas possíveis para atenuar os efeitos da nova regra geral de cálculo da aposentadoria (60% da média salarial mais 2% ao ano a partir de 20 anos de contribuição), destacam-se:
a) Majoração do acréscimo anual, de 2% para 2,75%, permitindo que todos os servidores vinculados ao RPPS alcancem os 100% da média das remunerações com 35 anos de contribuição, e não apenas com 40 anos;
b) Elevação do percentual inicial para professores, de 60% para 70%, de modo que o direito à aposentadoria com cinco anos a menos de tempo de contribuição, disposta na Constituição até novembro de 2019 [3] e que foi suprimida pela EC 103, não implique em prejuízo financeiro em comparação com os demais servidores.
 
A EC 103 também prevê duas regras de transição, aplicáveis para o servidor já em atividade, se mais vantajosas: (1) a regra por sistema de pontos, que faculta a concessão da aposentadoria quando o segurado atingir metas resultantes da combinação de idade e tempo de contribuição; e (2) a regra com pedágio de 100% do tempo restante na data de promulgação da emenda para o acesso à aposentadoria. Ambas as regras podem ser incorporadas no âmbito municipal, mas é oportuno defini-las com melhorias que ampliem o número de servidores beneficiados e respeitem as especificidades do ente. Por exemplo, pode-se prever que:
 
– O sistema de pontos eleve em um ponto a pontuação exigida a cada biênio, e não a cada ano, como disposto na EC 103;
– O pedágio exigido aumente o tempo de contribuição adicional em apenas 60% do tempo que — na data de entrada em vigor da reforma — faltar ao servidor para se tornar elegível ao benefício.
 
Por fim, mas não menos importante, é fundamental que as propostas de adequação das regras previdenciárias do RPPS municipal sejam acompanhadas de estudos atuariais e de impacto financeiro, a fim de garantir a viabilidade das alterações pretendidas, de acordo com a exigência da PEC 66 de que as adequações “contribuam efetivamente para o atingimento e a manutenção do equilíbrio financeiro e atuarial”, como exigido no artigo 115 das DTCF.
 
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[1] Repare-se que o art. 115 das DTCF não condiciona o parcelamento das dívidas do município à adoção de regras de cálculo semelhantes às aplicáveis aos servidores vinculados ao RPPS da União no caso da pensão por morte, mas apenas no que se refere às aposentadorias.
 
[2] Veja-se o Manual de Previdência, publicado em 2023 pelo TCE de São Paulo (TCE-SP) e voltado ao Estado e aos Municípios paulistas, disponível aqui. Na seção “16. Cálculo da média e atualização dos benefícios de aposentadoria”, tratando da média das remunerações e das fórmulas de cálculo dos proventos iniciais de aposentadoria, o Manual faz referência apenas ao disposto no art. 26 da EC 103, de aplicação obrigatória apenas no RPPS da União e no RGPS, sem sequer registrar a faculdade de adoção de critérios próprios, distintos daqueles vigentes no RPPS da União.
 
[3] Veja-se o parágrafo 1º-A do art. 40 da Constituição Federal vigente antes da aprovação da EC 103: “Os requisitos de idade e de tempo de contribuição serão reduzidos em cinco anos, em relação ao disposto no inciso III do § 1º, para o professor que comprove exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio” (grifo nosso).
 
• Luciano Fazio* - matemático pela Università degli Studi de Milão (Itália), pós-graduado em Previdência pela Fundação Getúlio Vargas e autor do livro O que é Previdência do Servidor Público (Loyola, 2020).
 
Fonte: Consultor Jurídico

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