O Equilíbrio atuarial do RPPS da União
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Luciano Fazio*
O déficit atuarial do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) dos servidores civis federais, na casa dos 1,5 trilhão de reais nos últimos anos, não vem sendo objeto de medidas voltadas à sua devida amortização. Tal omissão afronta as regras da Constituição Federal (CF) e contrasta com a rigorosa fiscalização imposta a Estados e Municípios, que - no tocante à amortização do déficit de seus RPPS - são frequentemente compelidos a adotar providências além de sua capacidade financeira. Diante desse quadro, se faz necessário revisar a exigência constitucional de equilíbrio atuarial, substituindo-a por uma regra de sustentabilidade de longo prazo mais realista e adequada à situação desses regimes previdenciários.
1 - A exigência de equilíbrio atuarial dos RPPS.
O art. 40 da CF determina que os RPPS sejam administrados de forma a garantir o equilíbrio financeiro e atuarial.
Por equilíbrio financeiro se entende a condição em que, no exercício, a receita corrente do RPPS (proveniente das contribuições dos servidores, ente federativo e demais fontes legalmente previstas) é suficiente para cobrir as despesas com o pagamento dos benefícios previdenciários devidos, sem necessidade de aportes adicionais não programados. Focado na sustentabilidade de curto prazo, o equilíbrio financeiro nada garante para os anos vindouros.
Conforme dispõe o art. 9º da Emenda Constitucional nº 103/2019, o equilíbrio atuarial do RPPS, em determinada data, é apurado com base em todo o período futuro e tem por objetivo a constituição de um patrimônio — ou seja, o conjunto de bens, direitos e ativos a ele vinculados, denominado ‘reserva garantidora’ — destinado ao pagamento das futuras prestações previdenciárias. Quando essa reserva não for inferior ao valor presente dos proventos futuros devidos, deduzidas as contribuições ainda a serem arrecadadas, se diz que há equilíbrio atuarial. Assim, esse equilíbrio requer o pré-financiamento de 100% das obrigações futuras com benefícios dos segurados, abrangendo tanto os já aposentados (geração passada) quanto os servidores em atividade (geração atual).
Contrariamente ao senso comum, o equilíbrio atuarial não se confunde com a simples adoção de medidas que garantam receitas para o custeio dos benefícios de alguns exercícios futuros; ele pressupõe, necessariamente, a adoção do regime financeiro de capitalização , mesmo que implantado ao longo de um período de anos. De fato, sem a adoção desse regime financeiro, não há como evitar o déficit atuarial do RPPS.
Como a maioria dos RPPS brasileiros, também o Regime Próprio da União não foi originalmente estruturado no regime financeiro de capitalização — atualmente exigido. Por isso, o alcance do equilíbrio atuarial implica uma transição de custo elevado, que cabe ao ente federativo instituidor do RPPS. Na prática, o sistema precisa arcar, em um único período geracional, com o pagamento de duas gerações de servidores: deve constituir a reserva garantidora para custear antecipadamente as aposentadorias da geração atual — utilizando, para tanto, a arrecadação e o investimento das contribuições previdenciárias incidentes sobre a folha de pagamento dos servidores ativos — e, simultaneamente, deve honrar o pagamento dos aposentados que não tiveram os benefícios pré-financiados.
2 - A situação do RPPS dos servidores civis da União.
A Avaliação Atuarial 2025, referente à data-base de 31/12/2024 , explica que o RPPS da União é administrado seguindo o regime financeiro de repartição simples — ou seja, as contribuições arrecadadas no exercício são usadas para pagar os benefícios de quem já está aposentado, sem a constituição de reservas. No entanto, ressalva que — para o estudo atuarial — é utilizado o regime de capitalização, projetando os recursos necessários no longo prazo para garantir o pagamento de todos os benefícios futuros. Assim, foi apurado o déficit atuarial de R$ 1,55 trilhão de reais. Esse déficit vem se repetindo ao longo dos anos (no fim de 2023, por exemplo, tinha sido de R$ 1,50 trilhão ), sinalizando que o problema não é conjuntural, mas estrutural.
O atuário responsável não recomendou medidas para sanar essa insuficiência atuarial, descumprindo o disposto na Portaria nº 1.467/2022, do Ministério do Trabalho e Previdência, a saber:
Art. 52. Para observância do equilíbrio financeiro e atuarial do RPPS, a avaliação atuarial deve indicar o plano de custeio necessário para a cobertura do custo normal e do custo suplementar do plano de benefícios. (grifo nosso)
Parágrafo único. Ao indicar o plano de custeio a ser implementado em lei, o atuário deve considerar critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial do RPPS, as características do método de financiamento adotado, a prudência das hipóteses e a qualidade da base cadastral utilizada.
As possíveis medidas a serem indicadas constam no art. 55 da mesma Portaria:
Art. 55. No caso de a avaliação atuarial apurar déficit, deverão ser adotadas medidas para seu equacionamento, que poderão consistir em:
I – Plano de amortização com contribuições suplementares, na forma de alíquotas ou aportes mensais com valores preestabelecidos;
II – Segregação da massa;
III – Aporte de bens, direitos e ativos, conforme art. 63;
IV – Adequação das regras de concessão, cálculo e reajustamento dos benefícios, conforme art. 164.
Seja como for, faltam hoje ações efetivas para assegurar o equilíbrio atuarial do RPPS da União. Tal situação compromete a sustentabilidade financeira desse sistema nos médio e longo prazos, bem como descumpre o comando constitucional e a disposição da Lei nº 9.717/1998 (Lei Geral dos RPPS), que determina a revisão do plano de custeio como instrumento para garantir o equilíbrio financeiro e atuarial:
Art. 1º Os regimes próprios de previdência social dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (…) deverão ser organizados com base em normas gerais de contabilidade e atuária, de modo a garantir seu equilíbrio financeiro e atuarial, observados os seguintes critérios:
I – Realização de avaliação atuarial inicial e em cada balanço, utilizando-se parâmetros gerais para a organização e revisão do plano de custeio e benefícios. (grifo nosso)
Vale lembrar que, ao determinar que os entes federativos busquem o equilíbrio atuarial de seus RPPS, a legislação nacional não prevê qualquer flexibilização para o Regime Próprio da União.
O Ministério da Previdência Social tem atribuições para exigir que eventuais irregularidades sejam solucionadas nos RPPS subnacionais, bem como para aplicar sanções — como a negativa da Certidão de Regularidade Previdenciária (CRP) . Para a União, contudo, a CRP não é emitida.
Diante desse cenário, assume especial relevância o controle externo exercido pelo Tribunal de Contas da União (TCU) quanto à regularidade previdenciária do RPPS da União. Trata-se do mesmo tipo de controle realizado pelos Tribunais de Contas dos Estados (TCEs) em relação aos RPPS dos entes subnacionais sob sua jurisdição. Há, contudo, diferenças de atuação entre os TCEs e o TCU. Em geral, diante de déficit atuarial de um RPPS, os TCEs exigem a instituição de plano de amortização (ou outra medida cabível) por meio de lei específica, com parâmetros claros e execução vinculada ao estudo atuarial. Em seguida, monitoram o cumprimento da medida, aplicando sanções em caso de atrasos ou falhas na execução. O TCU, por sua vez, não vem exigindo de forma efetiva junto à União o equacionamento do déficit atuarial do RPPS de seus servidores civis.
3 - Observações críticas
Possivelmente, a falta de atuação da União quanto ao equacionamento do déficit atuarial do RPPS federal está associada também ao elevado ônus dessa medida. Em 31/12/2024, a insuficiência de R$ 1,55 trilhão correspondia a 21% dos R$ 7,3 trilhões da Dívida Pública Federal. O necessário plano de amortização, com parcelas pelo período máximo de 35 anos e calculado à taxa de 6% ao ano (equivalente à rentabilidade real dos títulos federais de longo prazo), exigiria aportes anuais de R$ 106,9 bilhões. A sociedade brasileira aceitaria pagar esse custo?
Há quase trinta anos, a equipe econômica do governo Fernando Henrique Cardoso avaliou a adoção do modelo de capitalização para o Regime Próprio dos servidores civis da União, mas desistiu em razão do custo envolvido. Em 1999, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) estimou que, no RPPS da União, a transição do regime financeiro de repartição para capitalização teria um custo igual a 75% do Produto Interno Bruto nacional, provocando um aumento insustentável da dívida pública. Em 1998 — ou seja, antes mesmo de se verificar a viabilidade do projeto de capitalização — foi aprovada a Emenda Constitucional nº 20, que exige o equilíbrio atuarial de todos os RPPS. Na prática, a Constituição (CF) atualmente impõe que os RPPS sejam administrados de modo a alcançar a capitalização plena, uma vez que o equilíbrio atuarial — entendido como a ausência de déficit — só se verifica quando a reserva acumulada for suficiente para cobrir integralmente todas as obrigações previdenciárias futuras. Essa imposição pode ser questionada sob a ótica do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, pois impõe obrigações que não podem ser cumpridas de forma realista.
Diante do exposto, seria oportuno alterar a CF, substituindo a atual exigência de equilíbrio atuarial por outra garantia de sustentabilidade no longo prazo dos RPPS — menos onerosa para os cofres públicos e de aplicação mais viável.
Como alternativa, propomos a criação, de forma obrigatória, um fundo de aprovisionamento, nos moldes previstos no art. 249 da Constituição. Esse fundo seria custeado pelo ente instituidor do RPPS, da mesma forma que o ônus do equacionamento, que cabe ao ente federativo, pelas disposições da lei nº 9.717/1998. Funcionaria como uma reserva financeira que, ao longo de um período definido (por exemplo, 15 ou 20 anos), acumularia recursos até atingir um saldo mínimo correspondente a um percentual pré-fixado — como 50% — das prestações futuras dos benefícios já concedidos pelo RPPS. Em outras palavras, esse fundo não precisaria cobrir 100% das obrigações futuras, mas somente uma parte significativa delas. A solução aqui proposta seria menos ambiciosa que a capitalização plena, mas mais realista e, ainda assim, suficiente para assegurar a solvência dos regimes previdenciários no médio e longo prazo.
Do ponto de vista jurídico, essa solução preservaria a garantia constitucional de destinação exclusiva dos recursos previdenciários para o pagamento de benefícios, mantendo a proteção aos segurados já prevista na Constituição. Também manteria o controle externo pelos Tribunais de Contas e a transparência prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal. Além disso, não conflitaria com o princípio do equilíbrio financeiro (art. 40 da CF).
Sob o aspecto econômico, o fundo reduziria o custo de transição, pois seria formado progressivamente, em patamares mais compatíveis com a capacidade contributiva do ente federativo. Também permitiria melhor planejamento orçamentário, diminuindo o risco de descumprimento da regra constitucional e evitando pressões fiscais abruptas.
Em conclusão, de um lado, a União deve passar a observar os preceitos constitucionais. De outro lado, não se pode aceitar que os entes federativos sejam obrigados a perseguir metas manifestamente inexequíveis. É necessário, portanto, pautar a substituição da exigência constitucional de equilíbrio atuarial dos RPPS por outra regra mais realista e viável de sustentabilidade de médio e longo prazo.