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Luiz Alberto dos Santos

A Câmara dos Deputados vem acelerando a votação de medidas que podem ter efeitos deletérios sobre a responsabilização e persecução criminal de atores, inclusive agentes políticos, envolvidos em episódios que infringem as regras constitucionais e penais e até a própria democracia.

Com a recente condenação pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) de Jair Bolsonaro a 27 anos de reclusão pela tentativa de golpe, além de outras práticas criminosas ainda a serem julgadas, passou a ser objeto de grande pressão a votação do projeto de lei da “anistia”, cuja constitucionalidade, contudo, é mais do que duvidosa. Examinamos, já, em artigo publicado[1], essa problemática, que também foi abordada por membros do STF, em on, como o próprio Ministro Alexandre de Moraes, ao apartear o Voto da Ministra Carmen Lucia no julgamento da ação penal da “tentativa de golpe”, e o Ministro Gilmar Mendes[2], e em artigos de juristas de grande respeito, como o de Lenio Streck, Mauro Menezes e Pedro Serrano[3] publicado em 16.09.25.

Em 16.09.2025, a Câmara dos Deputados apreciou, com quebra de interstício, a Proposta de Emenda à Constituição nº 3, de 2021, que altera os art. 53 e 102 da Constituição, para restabelecer a previsão constitucional de que deputados e senadores somente podem ser submetidos a julgamento perante o STF com prévia licença da respectiva Casa, a ser apreciada em até 90 dias da data do recebimento da ordem emanada da Corte constitucional. No caso de flagrante de crime inafiançável, os autos deverão ser remetidos em 24h à Casa legislativa do parlamentar, para que resolva sobre a prisão. A alteração ao art. 102 insere entre os detentores da prerrogativa de foro os Presidentes nacionais de partidos políticos.

Na votação de destaque para votação em separado, foi rejeitada a previsão de que as autorizações para julgamento pelo STF deveriam ocorrer por votação secreta, o que, pelo menos, amplia a exposição pública dos que votarem a favor da impunidade de seus pares. Em 17.09.2025, na continuação da votação, foram aprovadas, porém, a previsão de voto secreto para autorização da prisão em caso de flagrante e o foro privilegiado para presidentes de partidos. Em uma manobra regimental, porém, o Relator apresentou emenda aglutinativa, ignorando a decisão adotada na véspera pelo Plenário e fundindo os parágrafos do art. 53, o que resultou na manutenção, para todos os casos, da votação secreta. Essa emenda foi aprovada, e mantida em segundo turno, o que levará à judicialização da Emenda Constitucional caso venha a ser aprovada pelo Senado Federal.

Mas o mais surpreendente, nesse contexto de abrandamento de regras em favor da impunidade foi a decisão dos partidos que apoiam Jair Bolsonaro de substituir a Líder da Minoria, Deputada Carol De Toni (PL-SC), pelo Deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), com o propósito de impedir que ocorra a perda de mandato em razão de não comparecimento às sessões da Casa.

Como é fartamente sabido, o Deputado se acha residindo nos Estados Unidos da América, desde fevereiro de 2025 e já declarou, em diversas oportunidades, que não pretende retornar ao Brasil, em face do temor de que seja preso. O risco de prisão decorre do fato de que, desde que se “autoexilou” nos EUA, vem atuando em favor da intervenção do Governo daquele país em decisões do STF, e pela adoção de medidas punitivas contra membros da Suprema Corte brasileira, de que resultou a aplicação da Lei Magnistsky ao Ministro Alexandre de Moraes. Ele também atuou fortemente, com o apoio de apoiadores de Donald Trump e até mesmo de brasileiros nos EUA para que fossem adotadas medidas tarifárias contrárias ao Brasil. Recentemente, em razão da radicalização de posições do Governo dos EUA frente à condenação de Jair Bolsonaro, foi anunciado o recrudescimento de medidas punitivas, ainda não divulgadas, e até mesmo foi mencionada a possiblidade de ações militares contra o Brasil.

O Partido dos Trabalhadores, por meio de seu Líder, já adotou diversas medidas para responsabilizar o Deputado Eduardo Bolsonaro.

Em 9 de setembro de 2025, foi apresentada representação criminal no Supremo Tribunal Federal pedindo a decretação da prisão preventiva de Eduardo Bolsonaro e o bloqueio imediato de salários e verbas parlamentares pagos ao parlamentar.

Segundo a representação do Deputado Lindbergh Farias, “o pagamento de verbas parlamentares está condicionado ao efetivo exercício do mandato. Findo o prazo da licença, a permanência no exterior sem autorização configura irregularidade grave, à luz do princípio da territorialidade do mandato e do artigo 228 do RICD, que impede a continuidade de qualquer pagamento com recursos públicos”. Afirma, ainda, que “o art. 228 do RICD dispõe que, para se afastar do território nacional, o deputado deve dar ciência prévia à Presidência da Câmara, indicando natureza e duração da ausência”. Aponta que “tal violação não é mera irregularidade formal: a presença física no território nacional é requisito e pressuposto para o exercício do mandato, inexistindo previsão para exercício à distância” e que “o uso do mandato a partir do exterior, sem respaldo legal, constitui desvio de finalidade, pois o cargo passa a servir a agendas pessoais e hostis ao Brasil, custeadas com verba pública”. E, ainda, que “a permanência no exterior, associada ao recebimento de verbas e manutenção de gabinete, implica enriquecimento ilícito por omissão administrativa, já que não há contraprestação ou, pior, a contraprestação é no sentido contrário dos interesses nacionais, com fornecimento de apoio a estrangeiros para a aplicação de sanções de revogação de vistos, aplicação da Lei Magnitsky e tarifas que, agora, culminam com ameaças de natureza militar.”

A Resolução nº14, de 2020, da Câmara dos Deputados, instituiu o Sistema de Deliberação Remota, medida excepcional destinada a viabilizar o funcionamento do Plenário durante a emergência de saúde pública de importância internacional relacionada ao coronavírus (Covid-19). Entende-se como votação e discussão remotas a apreciação de matérias por meio de solução tecnológica que concilie a presença física dos parlamentares nos órgãos da Casa, observadas as limitações a serem estabelecidas em regulamento, com a participação remota, em atenção, primordialmente, à segurança das Deputadas e dos Deputados que se enquadrem em grupos de risco para o coronavírus, responsável pela Covid-19.

O Sistema de Deliberação Remota (SDR), foi classificado pela Resolução como “medida excepcional a ser determinada pelo Presidente da Câmara dos Deputados para viabilizar o funcionamento do Plenário, das Comissões e do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar” durante a pandemia Covid-19.

Acionado o SDR, as deliberações dos órgãos da Casa serão tomadas por meio de sessões e reuniões remotas, que conciliarão participação presencial e remota, devendo o registro de presença e o resultado de votação serem exibidos de forma integrada e simultânea nos painéis físicos e no aplicativo.

Reforçando a tese da transitoriedade, a norma prevê que o Presidente da Câmara dos Deputados determinará que as deliberações presenciais sejam retomadas tão logo o deslocamento dos parlamentares entre Brasília e seus Estados e a realização de sessões e reuniões dos órgãos da Casa sejam, a seu juízo, compatíveis com as recomendações do Ministério da Saúde. As sessões e as reuniões realizadas por meio do SDR serão consideradas sessões deliberativas extraordinárias da Câmara dos Deputados e demais órgãos, devendo ser convocadas com antecedência mínima de 24 (vinte e quatro) horas, salvo se realizadas em sequência.

O Ato da Mesa Diretora nº 123, de 20 de março de 2020, regulamentou a Resolução e passou a permitir a realização de sessões semipresenciais, em que o registro de presença poderá ser efetuado nos termos do regime presencial ou por meio do aplicativo Infoleg. Contudo, prevê que o regime presencial será adotado nas sessões e reuniões de terças, quartas e quintas-feiras e o regime semipresencial será adotado nas sessões e reuniões de segundas e sextas-feiras. O Presidente da Câmara dos Deputados poderá determinar regime de funcionamento diverso dessas possiblidades – entre elas, sessões virtuais - no ato de convocação da sessão, que deverá ser publicado com antecedência mínima de vinte e quatro horas. Mas a participação de parlamentares por áudio e vídeo e a utilização de plataformas de videoconferência somente poderão ocorrer nas sessões e reuniões não deliberativas e nas audiências públicas, exceto no caso de deputada gestante partir da trigésima semana de gestação ou mediante a apresentação de atestado médico.

No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 661, julgada em 08.09.2021, e frente à excepcionalidade da situação gerada pela pandemia, o STF entendeu como válida a adoção de sessões remotas, em especial no caso da apreciação de medidas provisórias.

Em vista da transitoriedade da adoção do SDR, passada a pandemia, a Câmara dos Deputados fixou regras para o retorno às sessões presenciais, ajustando o Ato da Mesa nº 123. Contudo, na prática, isso não ocorreu de forma plena.

Desde o início da atual sessão legislativa até 16.09.2025, em 3 de fevereiro, foram realizadas pela Câmara dos Deputados, 84 sessões deliberativas, sendo 44 delas presenciais, 37 semipresenciais e 1 virtual. Todas, porém, foram classificadas como “sessões extraordinárias”, mesmo aquelas definidas como presenciais.

O Deputado Eduardo Bolsonaro, não fosse já o caso de exame de sua conduta pela Comissão de Ética da Câmara dos Deputados em razão da quebra de decoro, nos termos do art. 55, I da Constituição, que pode determinar a perda do mandato por decisão da Câmara, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa, poderia, de plano, ser considerado em situação de abandono do mandato parlamentar.

Nos termos do art. 55, III, da CF, norma que é repetida pelo art. 240 do Regimento Interno da Câmara, perderá o mandato o deputado “que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada”. Nesse caso, a perda do mandato será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa. Mas, segundo o art. 56, II da CF, não perderá o mandato o Deputado licenciado pela respectiva Casa para tratar, sem remuneração, de interesse particular, desde que, neste caso, o afastamento não ultrapasse cento e vinte dias por sessão legislativa.

O Deputado pediu, inicialmente, licença do mandato parlamentar por 120 dias, a contar de 20 de março de 2025. A licença esgotou-se em 20 de julho de 2025.

Na atual sessão legislativa, segundo dados da Câmara, foram contabilizadas 21 ausências não justificadas de Eduardo Bolsonaro, o que implicaria em que, mantido o “ritmo” de ausências, a partir de 27 ausências, desde 3 de fevereiro, já haveria atingido o limite de 1/3 de faltas a sessões deliberativas.

Observe-se que a Carta Magna se refere a “sessões ordinárias”, o que, formalmente, implicaria na inaplicabilidade da regra da perda do mandato por faltas: o Deputado teria, apenas, se ausentado de “sessões extraordinárias”.

Contudo, é eloquente o fato de que a classificação das sessões semipresenciais e virtuais, ou mesmo presenciais, na atual sessão legislativa, como “extraordinárias”, em sua totalidade, não pode servir de pretexto à anulação da regra, pois o requisito da presença do parlamentar em sessões “ordinárias” parte do pressuposto lógico de que o funcionamento da Casa legislativa se dá, como regra, por meio de sessões ordinárias, que, nos termos do art. 65 do Regimento, são realizadas “apenas uma vez por dia, de terça a quinta-feira,  iniciando-se às quatorze horas” e as extraordinárias, “as realizadas em dias ou horas diversos dos prefixados para as ordinárias”. Para formalizar a “burla” a esses requisitos, nada menos do que 46 sessões “extraordinárias”, das 82 registradas, tiveram início, desde 04.02.2025, às 13h55min...

Ciente do risco de que as ausências totais ultrapassassem em curto prazo o mínimo fixado, deu-se a indicação do Deputado Eduardo Bolsonaro para o cargo de Líder da Minoria, que, nos termos do art. 11-A do RICD, tem as prerrogativas constantes dos incisos I, III e IV do art. 10, ou seja, “fazer uso da palavra, nos termos do art. 66, §§ 1º e 3º, combinado com o art. 89”, “participar, pessoalmente ou por intermédio dos seus Vice-Líderes, dos trabalhos de qualquer Comissão de que não seja membro, sem direito a voto, mas podendo encaminhar a votação ou requerer verificação desta” e “encaminhar a votação de qualquer proposição sujeita à deliberação do Plenário, para orientar sua bancada, por tempo não superior a um minuto”. Não é, assim, um “Líder de partido”, nem a eles integralmente equiparado.

Ocorre que, para sustentar a tentativa de assegurar que a ausência do Deputado Eduardo Bolsonaro não seja considerada para fins da perda de mandato, os partidos que integram a Minoria (PL, NOVO, PODEMOS e União) consideraram que o Líder da Minoria estaria dispensado do registro de frequência, em vista do decidido em Reunião da Mesa Diretora realizada em 11 de maio de 2015.

Na ocasião, sob a Presidência do Deputado Eduardo Cunha, ficou registrada a seguinte decisão da Mesa:

“... a Senhora Deputada Mara Gabrilli, Terceira-Secretária, apresentou, extrapauta, mais uma questão a respeito   da justificativa de ausência, a dos Deputados que, em razão da natureza de suas atribuições, não precisavam registrar presença. Analisada a questão, a Mesa Diretora, por unanimidade, resolveu rever o entendimento de   Mesas anteriores, considerando justificadas as ausências de registro no painel eletrônico, nas Sessões deliberativas da Casa, somente dos Senhores membros da Mesa Diretora e dos Líderes de Partido.” (Diário da Câmara dos Deputados 05.03.2015, p. 517)

Inicialmente, é importante registrar a completa ausência de sustentação legal a essa “decisão” da Mesa da Câmara, dispensando líderes partidários e membros da mesa de registrarem presença, para os fins de afastamento da regra do art. 55, III da CF e art. 240 do RICD. Sendo a Resolução da Câmara que aprova o regimento lei em sentido material, somente norma da mesma hierarquia poderia dispor sobre o tema; ainda assim, sua constitucionalidade seria questionável, à luz da expressa previsão do art. 55, III, que requer o mínimo de comparecimento às sessões da Casa, sem estabelecer distinções entre seus membros.

Mas, além disso, a decisão se refere, exclusivamente, aos “Líderes de Partido” e, como já demonstrado, o Líder da Minoria não lidera partido, nem detém todas as prerrogativas de líder de partido, mas, apenas, algumas delas.

Ele é, com efeito, um deputado, entre tantos, sujeito às mesmas regras que seus pares, quanto à frequência, e somente detém algumas prerrogativas específicas, vinculadas a sua função de “representar” a minoria e declarar suas posições quanto aos temas em debate.

A equação, portanto, não chega a resultado válido.

Primeiro, porque a Constituição não admite a “flexibilização” do requisito de presença registrada em sessões da Câmara, de forma a permitir a ausência além de um terço das sessões, exceto se no gozo de licença ou no cumprimento de missão autorizada. Segundo, porque a “decisão” da Mesa de 05.03.2015 não tem o condão de afastar nem o Regimento Interno, e menos ainda a Constituição Federal, para esse fim. Terceiro, porque o artifício de classificar sessões “ordinárias” como extraordinárias, como tem sido feito, revela fraude à Constituição e essa classificação, no caso das 46 sessões iniciadas às 13h55, das quais 39 foram presenciais, não pode servir de pretexto a validar ausências. Caso computadas apenas essas sessões para fins de verificação do cumprimento do art. 55, III, o Deputado Eduardo Bolsonaro, com 21 ausências não justificadas na atual sessão legislativas, computadas pela Câmara, já estaria sujeito perda do mandato por faltas.

E, finalmente, o artifício da sua indicação para Líder da Minoria, que não depende de aprovação por nenhuma instância da Mesa, mas apenas sua formalização como ato de ofício pelo Presidente da Câmara, sequer tem respaldo na “decisão” da Mesa, posto que o Líder da Minoria não é “líder de partido”; ainda que fosse, tal “decisão” não tem força legal para afastar a norma constitucional e regimental.

Caso essa indicação seja empregada como pretexto para franquear ao Deputado Eduardo Bolsonaro um direito anômalo de “liderar” a minoria à distância, por meio do Sistema de Deliberações Remotas, ou “abonar” ausências em sessões presenciais, tal fato, com efeito, pode vir a ser objeto de questionamento judicial, junto ao Supremo Tribunal Federal, por direta ofensa ao art. 55, III da Constituição e, ainda, por grave ofensa ao princípio da impessoalidade inscrito no “caput” do art. 37 da Constituição.

Ainda que haja um risco não desprezível de que a Corte considere o tema “interna corporis” o fato de esse argumento ter sido afastado quando da deliberação na ADPF 661, em 2021, sugere que, dada a gravidade da situação e as condutas do deputado em seu período de ausência, agindo não apenas contra os interesses nacionais, mas contra as próprias instituições brasileiras, o exame do STF ultrapassaria essa “barreira”, com grande chance de afastar a aplicação da franquia que os partidos da Minoria pretendem lhe assegurar, para evitar a perda de mandato.

Tempos difíceis aqueles em que situações dessa ordem se apresentam aos representantes eleitos, aos membros da mais alta corte do país e aos próprios cidadãos, que presenciam o uso de manobras – inclusive, emendas constitucionais – para permitir a continuidade de práticas criminosas, ou assegurar a sua impunidade.

O Brasil não merece isso.

*Advogado e Consultor. Mestre em Administração e Doutor em Ciências Sociais. Consultor Legislativo (aposentado) do Senado Federal

 

[1] https://www.congressoemfoco.com.br/artigo/110999/a-anistia-aos-golpista-de-8-de-janeiro?s=WA

[2] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/09/15/gilmar-mendes-diz-ter-conviccao-de-que-proposta-de-anistia-por-tentativa-de-golpe-nao-sera-votada-no-congresso.ghtml

[3] https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2025/09/7248971-a-anistia-e-a-aberracao-sistemica.html

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