PEC 32/20: desregulamentação de direitos; regulamentação de restrições
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A consequência será o aumento da negligência governamental no combate às desigualdades regionais e de renda, e a redução da presença dos pobres no Orçamento Público. Isso ocorre invariavelmente com a diminuição ou retirada do Estado no provimento de bens e serviços aos cidadãos, às populações, aos territórios vulneráveis e aos desassistidos. Não se cogita de aumentar receita, apenas de reduzir despesas.
Antônio Augusto de Queiroz*
1) Introdução
O governo do presidente Jair Bolsonaro, no último dia 3 de setembro de 2020, encaminhou ao Congresso Nacional a sua proposta de Reforma Administrativa, aprofundando o ajuste fiscal praticado no governo Michel Temer. A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 32/20, que “Altera disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa”, iniciou sua tramitação pela Câmara dos Deputados, e fecha o ciclo do chamado Plano Mais Brasil, que inclui 2 outras PEC, a 186/19 (Emergencial) e 198/20 (Pacto Federativo), ambas em tramitação no Senado Federal.
O chamado Plano Mais Brasil, composto por um conjunto de reformas em nível constitucional e infraconstitucional, tem como fundamento teórico o equilíbrio fiscal intergeracional, segundo o qual os governos só podem contrair dívidas para pagar despesas de custeio até o limite do volume de investimentos, sob pena de punir as futuras gerações, que teriam que pagar a conta sem terem chance de se beneficiar do endividamento. É por isso que estão previstos gatilhos que suspendem o aumento de despesas não-financeiras sempre que o endividamento ultrapassar o teto de gasto, a regra de ouro ou o limite da despesa com pessoal.
Esse conjunto de propostas, além disto, faz parte da operação desmonte dos direitos e do Estado de bem-estar social, iniciado no governo Temer com a chamada “Ponte para o Futuro”, cuja legado foi a aprovação da Reforma Trabalhista, a Terceirização generalizada e o Teto de Gasto, e que teve continuidade no governo Bolsonaro, com a Reforma da Previdência, que suprimiu direitos previdenciários, e com a Lei Complementar 173/19, que além de suspender reajustes e outros benefícios dos servidores até 31 de dezembro de 2021, modificou dispositivos permanentes da Lei de Responsabilidade Fiscal em desfavor do servidor público.
A Exposição de Motivos 47/20, que encaminha a PEC ao Congresso Nacional, ratifica e reforça essa ideia de mudança do papel do Estado. Sob o fundamento de que o Estado custa muito e entrega pouco e com base no falso argumento de que pretende evitar duplo colapso: na prestação de serviços para a população e no orçamento público, a equipe econômica afirma na referida exposição de motivos que a reforma administra “se insere em um escopo maior de transformação do Estado, que pretende trazer mais agilidade e eficiência aos serviços oferecidos pelo governo, sendo o primeiro passo uma alteração maior do arcabouço legal brasileiro.
A lógica da reforma, com efeito, consiste na revisão do papel do Estado na economia e na área social, bem como na redução do gasto e da máquina pública. A consequência será o aumento da negligência governamental no combate às desigualdades regionais e de renda, e a redução da presença dos pobres no Orçamento Público. Isso ocorre invariavelmente com a diminuição ou retirada do Estado no provimento de bens e serviços aos cidadãos, às populações, aos territórios vulneráveis e aos desassistidos. Não se cogita aumentar receita, apenas de reduzir despesas.
Nessa perspectiva, a proposta possui duplo objetivo:
1) de natureza liberal-fiscal, que busca satisfazer o mercado e atender à visão ideológica neoliberal da equipe econômica; e
2) de caráter persecutório e de preconceito para com o servidor. O primeiro teria por base a suposição de que o Estado é perdulário, faz má alocação e desperdiça recursos, além de ser acusado de patrocinar privilégios e ser ineficiente. O segundo se expressa na narrativa de ataque à honra dos servidores, que têm sido associados por autoridades governamentais à parasitas, à assaltantes e à inimigos do povo.
O texto da Reforma Administrativa, entretanto, é coerente com que pensa o governo sobre os servidores e os serviços públicos e está em plena sintonia com o PPA (Plano Plurianual) enviado ao Congresso para os anos de 2020 a 2023, que propõe a redução da estrutura administrativa do Estado, a ampliação da digitalização e da automação dos serviços públicos, além de descentralização e privatização mediante a celebração de contratos ou convênio com entidades públicas e privadas que envolvam tanto a compra de bens e serviços quanto a transferência de recursos e responsabilidade pela execução de serviços.
Assim, embora apresentada sob o fundamento de conferir maior eficiência, eficácia e efetividade à atuação do Estado e até de ampliação da transparência e do controle social, a reforma, na verdade, parte do pressuposto de superioridade da gestão privada e busca trazer para a Administração Pública a lógica de mercado, de relação cliente-consumidor, que se pauta pela demanda, numa transação de natureza mercado ou comercial de troca. Em todos os países em que esse desenho foi implementado falhou, porque no Serviço Público a lógica de prestação de serviço deve ser orientada pela necessidade dos cidadãos, considerando princípios como equidade e justiça, e não de mercado, que busca apenas a maximização do lucro.
Além disso, a Reforma Administrativa, que parte da desconfiança dos servidores de carreira, vem num contexto de desmonte dos serviços públicos e não guarda qualquer relação com a melhoria da qualidade do serviço público, nem com a meritocracia. Pelo contrário, foi concebida para desorganizar o Serviço Público, punir os atuais servidores e submeter os futuros à regras draconianas de gestão. A prova disto é que está autorizando a contratação, para exercer cargos de liderança em área estratégicas, técnicas e gerenciais — postos antes reservados a servidores de carreiras —, uma espécie de capataz, gente indicada por políticos para vigiar e punir os servidores que agirem em desacordo com a orientação oficial, seja essa legal ou não.
A proposta, que visa à desconstitucionalização de direitos — remetendo praticamente tudo para as leis ordinárias e complementares, tal como ocorreu com a Reforma da Previdência —, está estrutura em 4 princípios, 3 grandes orientações ou eixos, 3 fases e 9 mudanças constitucionais, que serão analisados neste texto.
2) Princípios da reforma
Segundo a exposição de motivo, os 4 princípio norteadores da reforma são:
1) foco em servir: consciência de que a razão de existir do governo é servir aos brasileiros;
2) valorização das pessoas: reconhecimento justo dos servidores, com foco no seu desenvolvimento efetivo;
3) agilidade e inovação: gestão de pessoas adaptável e conectada com as melhores práticas mundiais; e
4) eficiência e racionalidade: alcance de melhores resultados, em menos tempo e com menores custos.
Nessa perspectiva, além dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, a PEC propõe constitucionalizar mais outros 8 princípios, que teriam que ser observados pela Administração Pública:
1) imparcialidade; 2) transparência; 3) inovação; 4) responsabilidade; 5) unidade; 6) coordenação; 7) subsidiariedade; e 8) boa governança.
Trata-se de narrativa que busca apresentar a reforma como algo positivo para os servidores e para os usuários de serviços públicos, tal como também fez o chamado Plano Diretor da Reforma do Estado, apresentado no governo Fernando Henrique Cardoso, para justificar a Reforma Administrativa da época. Ou seja, faz parte do marketing destinado a persuadir os incautos a respeito da importância e necessidade da reforma.
3) Eixos orientadores da reforma
Ainda segundo a Exposição de Motivos, são as seguintes as 3 grandes orientações ou eixos da reforma:
1) modernizar o Estado, conferindo maior dinamicidade, racionalidade e eficiência à sua atuação;
2) aproximar o Serviço Público brasileiro da realidade do país; e
3) garantir condições orçamentárias e financeiras para a existência do Estado e para a prestação de serviços públicos de qualidade.
O primeiro eixo, de acordo com a opinião governamental, busca a adoção de uma política de gestão de pessoas ágil, adaptável e conectada com as melhores práticas internacionais, bem como viabilizar dinâmica de relacionamento com órgãos e entidades públicos e com a iniciativa privada de forma a contribuir com mais efetividade para o atendimento da demanda por serviços públicos.
O segundo eixo, por sua vez, consistiria na elaboração de medidas com vistas à aproximação do serviço público brasileiro à realidade do país, tendo como inspiração os estudos do Banco Mundial (Um ajuste Juros: Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil, publicado em 2017, e “Gestão de Pessoas e Folha de Pagamento do Setor Público Brasileiro: o que os dados dizem”, que analisa dados sobre a folha de pagamento do Governo Federal e de seis Governos Estaduais” publicado em outubro de 2019. O primeiro estudo apresenta supostas evidências de que o gasto público é engessado em categorias como folha de pagamento e previdência social, deixando pouca margem para despesas discricionárias e investimento, porém sem mencionar nada relativo aos juros e principal da dívida. O segundo apresenta supostas distorções no gasto com pessoal.
O terceiro eixo se destinaria a garantir condições orçamentária e financeira para a existência do Estado e para a prestação de serviços públicos de qualidade, segundo a mensagem, de modo a contar com mecanismo de melhor gestão do gasto público com pessoal, considerando que esse gasto representa a segunda maior despesa da União, depois da Previdência. Nenhuma palavra sobre a dívida, que, de longe, é o maior gasto governamental.
As diretrizes ou eixos orientadores, igualmente, têm muito de retórica e pouco de real compromisso com esses postulados. São o verniz para justificar o ajuste fiscal.
4) Fases da reforma
De acordo com a apresentação feita pela equipe econômica, a reforma será implementada em 3 fases:
1) PEC do Novo Regime de Vínculo e Modernização organizacional da Administração Público;
2) PLP e PL de Gestão de Desempenho, PL de Consolidação de Cargos, Funções e Gratificações, PL de Diretrizes de Carreiras, PL de modernização das formas de trabalho, PL de Arranjos Institucionais, PL de Ajuste no Estatuto do Servidor, e
3) PL e PLP do novo Serviço Público: novo marco regulatório das careiras, Governança remuneratória e Dizeres e deveres do novo serviço público.
Assim, dependeriam de lei ordinária: avaliação de desempenho; remuneração em período de licença; consolidação de cargos; funções de gratificações; cooperação de atividade entre Estado e iniciativa privada; e de lei complementar: gestão de pessoas, política remuneratória e de benefícios, ocupação de caros de liderança e assessoramento, organização da força de trabalho no Serviço Público, progresso e promoção, desenvolvimento e capacitação de servidores, duração máxima da jornada para fins de acumulação de atividades, definição dos cargos típico de Estado, e autorização da migração do servidor de vinculo indeterminado para o RGPS.
Além da PEC, diversos temas da reforma serão objeto de regulamentação em leis ordinárias e complementares, as quais só deverão ser enviadas ao Congresso após a aprovação e promulgação da reforma. Como a Lei Complementar 173/20 congelou os gastos com pessoal até 31 de dezembro de 2021, faz sentido que os projetos sejam examinados no próximo ano, para produzir efeitos práticos a partir de janeiro de 2022.
5) Principais mudanças
Em linhas gerais, a PEC da Reforma Administrativa, dentre outros pontos, pretende:
1) desconstitucionalizar direitos, remetendo-os para leis complementares e ordinárias;
2) extinguir o Regime Jurídico Único, com a instituição de novas modalidades de contratação e as formas de ingresso;
3) extinguir a estabilidade como regra e instituir uma estabilidade mitigada para os cargos típicos de Estado;
4) extinguir as promoções automáticas por tempo de serviço;
5) transversalidade/mobilidade com redução de salário de ingresso no serviço público;
6) extinguir vantagens;
7) transferir a execução de serviços públicos da União para estados e municípios e entidades privadas;
8) transfererir competências do Congresso para o presidente para extinguir cargos e órgãos da Administração Pública; e
9) atacar os direitos dos atuais servidores.
5.1) Desconstitucionalização - tudo depende de lei
A Reforma Administrativa, assim como ocorreu na Reforma da Previdência, poderá ser aprofundada por intermédio de leis ordinárias e complementares, já que se manteve na Constituição apenas alguns princípios. A lógica de desregulamentar direitos e regulamentar restrições, deixando na Constituição apenas os princípios gerais e regras de restrições de direitos, e remetendo para a legislação infraconstitucional todos os direitos.
Nessa perspectiva, a PEC reserva para lei complementar, de iniciativa do presidente da República, de caráter nacional, que obriga estados e municípios, as diretrizes gerais sobre pessoal, cabendo aos outros poderes, órgãos e entes subnacionais, a regulamentação, em lei ordinária, desses princípios gerais, que vincula, limita e obriga a todos.
A lei complementar, de iniciativa do chefe do Poder Executivo federal, tratará dos seguintes pontos:
1) Gestão de pessoas;
2) Política remuneratória e de benefícios;
3) Ocupação de cargo de liderança e assessoramento;
4) Organização da força de trabalho no Serviço Público;
5) Progressão e promoção funcionais;
6) Desenvolvimento e capacitação de servidores; e
7) Duração máxima da jornada para fins de acumulação de atividades remuneradas.
Em lei ordinária, os entes subnacionais e os outros poderes e órgãos, respeitando os limites da lei complementar, poderão dispor sobre os 5 tipos de vinculo:
1) experiência; 2) prazo indeterminado; 3) cargos típicos; 4) prazo determinado; e 5) liderança e assessoramento, além dos critérios para definição dos cargos típicos.
5.2) Fim do RJU e os novos vínculos e formas de ingresso no Serviço Público
A PEC extingue o RJU (Regime Jurídico Único), elimina a previsão de “planos de carreiras” para servidores e institui 3 regimes estatutários:
1) por prazo indeterminado; 2) por prazo determinado; e 3) para cargo de “liderança e assessoramento”. Destes, apenas a primeira modalidade se dará por concurso público de provas ou de provas e título.
5.2.1) Novos regimes estatutários
A contratação por prazo indeterminado se dará em 2 modalidades:
1) para cargo típico de estado, que terá direito a estabilidade, ainda que mitigada; e
2) demais cargos, que constituirão a maioria dos cargos da Administração Pública, porém sem direito a estabilidade.
As contratações por prazo determinado ou contratação temporária terão seu escopo ampliado, ficando autorizada a contratação nessa modalidade:
1) por necessidade temporária decorrente de calamidade, de emergência, de paralisação de atividades essenciais ou de acúmulo transitório de serviço;
2) atividades, projetos ou necessidades de caráter temporário ou sazonal, com indicação expressa da duração dos contratos; e
3) atividades ou procedimentos sob demanda.
Os cargos de liderança e assessoramento substituem as funções de confiança e cargos de livre provimento de chefia, direção e assessoramento, porém com ampliação de seu escopo, passando a incluir novas atribuições, antes reservadas a servidores de carreira, como atividades com responsabilidades estratégicas, gerencias ou técnicas. Com isto põe-se fim à reserva constitucional de cargos em comissão e funções de confiança privativa de servidores de carreira, abrindo para a indicação política inclusive áreas com poder de polícia, como as áreas de fiscalizações tributária, trabalhista, ambiental, entre outras.
Além da ampla possibilidade de contratação por prazo determinado e a ampliação exagerada das atribuições dos cargos de livre provimento — liderança e assessoramento — a PEC também amplia a possibilidade de contratos de gestão, eliminando amarras anteriores quanto à transferência para o setor privado sem fins lucrativos — como as organizações sociais e os serviços sociais autônomos — de uma série de serviços e atividades atualmente a cargo de servidores da Administração direta, autárquica e fundacional, especialmente nas áreas de Saúde Educação, Meio Ambiente, Comunicações, Previdência, entre outras.
Com tanta possibilidade de contratação, dificilmente os governos irão realizar concurso público para cargos com prazo indeterminado, já que podem suprir suas necessidades de pessoal com contrato temporário, com cargos de livre provimento e com a ampliação dos contratos de gestão. Além disto, de acordo com o art. 37-A e na forma da lei, a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios ficam autorizados a firmar instrumentos de cooperação com órgãos ou entidades, públicos ou privados, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira.
5.2.2) Novas formas de ingresso ou de recrutamento no serviço público
Os concursos públicos ficarão limitados aos cargos a serem contratados por prazo indeterminado, que inclui os servidores ocupantes de cargo típico de estado e os servidores contratados por prazo indeterminado, porém as garantias e prerrogativas dos ocupantes de cargo típico de Estado. Os contratados por prazo determinado serão submetidos a processo seletivo abreviado e os cargos de liderança e assessoramento nem isto será exigido, basta a indicação política.
Como se depreende da leitura do tópico anterior, a reforma cria 4 categorias de vínculos funcionais com a administração pública:
1) ocupantes de cargo típico de estado;
2) ocupantes de cargos com vínculo indeterminado;
3) ocupantes de empregos público por prazo determinado; e
4) ocupantes de cargo de liderança e assessoramento.
Os 2 primeiros, após passarem no concurso, assumem como “trainee” por período de experiência para efeito de avaliação mais abrangente e tomada de decisão quanto à admissão do servidor em cargo que compõe o quadro de pessoal de caráter permanente, a depender de classificação, dentro do quantitativo previsto no edital do concurso público, entre os mais bem avaliados ao final do período.
Entende-se como ocupante de cargo típico de Estado aquele servidor que exerce atividades inerentes ao Estado como Poder Público sem correspondência no setor privado, como Diplomacia, Moeda, Ordem Interna, Sistema de Justiça, Arrecadação e Fiscalização, Formulação e Administração de Políticas Públicas, Sistema de Controle e Orçamento, Advocacia Pública, etc. Os ocupantes desses cargos correspondem a algo em torno de 15% do quadro de pessoal da Administração Pública federal. Já os ocupantes de cargos com vínculo indeterminado são aqueles servidores que exercem atividades contínuas e que não sejam típicas de Estado, como as atividades técnico-administrativas ou especializadas e que envolvam maior contingente de pessoas, também, se submetem a concurso público. Reúne algo como 85% do quadro de pessoal da União.
A investidura em cargo típico de Estado, correspondente ao atual cargo efetivo, depende de 3 etapas:
1) aprovação em concurso de provas e títulos;
2) desempenho satisfatório durante o prazo de 2 anos de experiência; e
3) classificação entre os mais bem avaliados.
Ou seja, o futuro ocupante de cargo típico de Estado precisa passar por 3 etapas.
A primeira etapa é a aprovação no concurso de provas e títulos.
A segunda etapa corresponde ao período de experiência, ou fase como “trainee”, que dura 2 anos. Se obtiver desempenho satisfatório e estiver classificação final dentro do quantitativo de vagas do edital do concurso, entre os mais bem avaliados ao final do período como “trainee”, passa para a terceira fase, a do estágio probatório de 1 ano.
E a terceira etapa é o estágio probatório de 1 ano, durante o qual também será avaliado para efeito de efetivação.
A investidura em cargo por vínculo indeterminado, uma espécie de cargo efetivo de segunda categoria, que representará a maioria do quadro de pessoal da Administração Pública, algo como 85%, também depende de concurso público, que será feito em 2 etapas. A primeira é o concurso de provas e títulos e a segundo será o período de experiência ou como “trainee”, com duração de 1 ano, sendo também aproveitados ou efetivados aqueles com desempenho satisfatório durante o período como “trainee”.
A suposição, nas 2 hipóteses, é dde que serão chamados mais “trainees” do que o número de vagas do edital, sendo dispensados aqueles que não forem classificados ou tiverem desempeno insuficiente no período como “trainee” nos 2 casos e também no estágio probatório, no caso do aspirante a cargo típico de Estado.
O servidor enquadrado como ocupante de cargo típico de Estado não pode exercer nenhuma outra atividade remunerada, exceto a de professor. Já o ocupante de cargo efetivo sem estabilidade poderá acumular, mas, diferentemente do servidor ocupante de cargo típico de Estado, estará sujeito à redução de jornada, com redução de salário.
5.3) Fim da estabilidade como regra e estabilidade mitigada para os cargos típicos de Estado
A estabilidade de emprego no serviço público, e mesmo assim de forma mitigada, ficará limitada aos servidores que ingressaram antes da reforma e aos futuros ocupantes de cargos típicos de Estado, ficando os demais servidores contratados por prazo indeterminando sem essa garantia contra perseguição ou assédio de governantes contrários ao interesse público e de seus prepostos, que ocuparão cargos de liderança e assessoramento.
A dispensa de ocupante de cargo típico de Estado, o que inclui os atuais servidores, ocorrerá mediante:
1) decisão judicial transitado em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, ainda que caiba recurso;
2) processo administrativo, com ampla defesa, como já é previsto; e
3) avaliação periódica de desempenho, mas disciplinada em lei ordinária, e não mais em lei complementar.
De acordo com a proposta, a maioria dos servidores, tanto os concursados para cargo indeterminado que seja cargo típico de Estado, quanto os contratados por prazo determinado, mediante processo seletivo simplificado, não terão proteção da estabilidade, podendo ser dispensado por excesso de gasto ou por decisão política do poder ou órgão a que pertença. Nos casos dos ocupantes dos cargos de liderança e assessoramento, o critério é meramente de conveniência política, possibilitando até mesmo a destituição por motivação político-partidária.
5.4) Fim das promoções e progressões por tempo de serviço
A progressões, como regra, têm o tempo de serviço como fator determinante, ainda que exija algum tipo de desempenho para promoção por merecimento. Com a proposta, a progressão e promoção ficam condicionadas a fatores como participação em curso de aperfeiçoamento, titulação, ocupação de cargos em comissão, nota alta em avaliação de desempenho, tanto institucional quanto individual. Será, na prática, a adoção do Sidec, o Sistema de Avaliação que seria adotada para as carreiras remuneradas sob a forma de subsídio, segundo o qual apenas os servidores com maior pontuação teria direito a promoção, desta vez restringindo ou limitando as promoções e progressões, a número determinado de vagas para crescimento na carreira fato que forçaria uma prática danosa e geradoras de ineficiência, que é a competição entre os servidores por vagas limitadas, vencendo os de maior pontuação.
5.5) Transversalidade e redução do salário de ingresso
A adoção da transversalidade, com a possibilidade de transferir servidor de um outro para outro sem qualquer restrição, bem como a redução do salário de ingresso, a menos da metade do atual, são objetivos da reforma. A ideia do governo é extinguir cargos e carreiras e criar o novo carreirão, em que os novos servidores serão coordenados por um órgão central de pessoal e distribuído de acordo com as necessidades e a conveniência da Administração, sem vinculação com o órgão de origem, como é atualmente.
O governo fez sua, a proposta do Banco Mundial, que considera o “prêmio” salarial do servidor brasileiro muito elevado. O governo, em sintonia com essa recomendação, pretende reduzir o salário de ingresso a algo como 50% do atual e autorizar a possibilidade de redução de jornada, com redução de salário, além de determinar que fica proibida a redução de jornada, sem a respectiva redução salarial.
5.6) Extinção de vantagens que o governo chama de distorções
O governo anuncia que a PEC irá extinguir distorções, especialmente a licença-prêmio; o reajuste retroativo; o adicional por tempo de serviço; parcelas indenizatórias sem base legal; aposentadoria compulsória como punição; o adicional de indenização por substituição não efetiva; a redução de jornada, sem redução de salário; a progressão e promoção automática ou apenas por tempo de serviço; a incorporação ao salário de valores referentes ao exercício de cargos e funções; as férias superiores a 30 dias etc. Entretanto exclui do alcance dessas regras os militares, os parlamentares, os magistrados e membros do Ministério Público, exatamente aqueles que seriam os principais beneficiários das vantagens mais estravagantes, como a aposentadoria compulsória como punição, as férias superiores a 30 dias e a progressão e promoção automática, entre outros. A maioria dessas vantagens já foi extinta e não é mais praticada na União, a começar pela licença-prêmio e o reajuste com caráter retroativo.
5.7) Transferência da execução de serviços públicos para entes subnacionais e entidades privadas
Conforme já mencionado anteriormente, o art. 37-A autoriza que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios possam, nos termos de lei ordinária, firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicas e privadas, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira. É a senha para transferir para Estados e Municípios uma série de atividades atualmente executadas pela União, para ampliar os contratos de gestão com Organizações Sociais e Serviço Social Autônomo, assim como para privatizar os serviços públicos, especialmente aqueles que no governo do PT, por intermédio do PLP 92/07, que transferia para fundações publicas ou privadas a execução dos serviços de I - saúde; II - assistência social; III - cultura; IV - desporto; V - ciência e tecnologia; VI - meio ambiente; VII - previdência complementar do servidor público; VIII - comunicação social; e IX - promoção do turismo nacional. A única vedação diz respeito às atividades privativas de cargo típico de estado, protegidos pela estabilidade.
5.8) Transferência de competências do Congresso para o presidente da República
A PEC amplia os poderes do presidente da República para dispor, por decreto, sobre a extinção de cargos, transformações, fusões e extinções de órgãos ou entidades, inclusive autarquias, a criação de órgãos sem aumento de despesa, além de alterações de carreiras e cargos, exceto cargos típicos de Estado. Ou seja, amplia o espaço para perseguição política e extinção de cargos, carreiras ou até órgãos cuja atuação desagrade ao governo de plantão, sem a necessidade do aval do Legislativo. Isso representa um "cheque em branco" para a reorganização da Administração Pública a partir de estudos do Ministério da Economia, sem transparência e diálogo e com base nas recomendações do Banco Mundial, com o objetivo de aumentar mobilidade e transversalidade dos cargos e carreiras e a alteração de suas atribuições; reduzir salário e retardar crescimento na carreira; eliminar ou fundir carreira ou mesmo dar tratamento diferenciado a cargos de uma carreira com mais de um cargo. Trata-se do retorno a um modelo altamente centralizador e autoritário de gestão, já vivenciado no Estado Novo de Vargas, quando criou o Dasp, e na ditadura militar, após a edição do Decreto-Lei 200/67.
5.9) Ataque aos direitos dos atuais servidores
Embora o governo diga o contrário, como aliás já fez na Reforma da Previdência, a PEC da Reforma Administrativa atinge em várias dimensões os atuais servidores públicos. Entre os pontos que os afetam de forma negativa, pode-se mencionar:
- fim da estabilidade. O servidor passará a poder ser demitido, além de por decisão por trânsito em julgamento, por decisão judicial colegiada e por insuficiência de desempenho, cuja regulamentação será feita por lei ordinária ou MP e não mais por lei complementar;
- proíbe a progressão e promoção com base apenas em tempo de serviço, ficando condicionada, em caráter obrigatório, à avaliação de desempenho;
- perde o direito de ocupar cargo de livre provimento, pois estão sendo eliminadas as cotas de cargos que deveriam ser ocupados apenas por servidor de carreira;
- permite a destituição de comissionados por motivação político-partidária, mesmo que o servidor seja concursado;
- amplia o escopo de atuação dos cargos de livre provimento, agora batizados de “liderança” e “assessoramento” para funções estratégicas, técnicas e gerenciais;
- servidor enquadrado como cargo típico de Estado não poderá realizar nenhuma outra atividade remunerada, nem mesmo acumular cargos público, exceto de professor;
- extingue o RJU;
- atribui plenos poderes ao presidente para, por decreto, extinguir cargos, planos de carreiras, colocar servidor em disponibilidade e extinguir órgãos, inclusive autarquias;
- mesmo não havendo redução salarial, a referência remuneratória passará a ser do novo servidor, cujo salário de ingresso será bem menor, criando constrangimento ao antigo servidor e legitimando o congelamento salarial em longo prazo; e
- quem se licenciar para exercer mandato sindical, político, estudar, acompanhar parente doente perderá o direito de receber retribuição de posto comissionado, gratificações de exercício, bônus, honorários, parcelas indenizatórias, etc.
A proposta, como se vê, representa um verdadeiro desmonte dos serviços e dos direitos dos servidores públicos. É a “granada” no bolso do servidor, que Paulo Guedes mencionou na fatídica reunião de 22 de abril de 2020.
É preciso ficar de olho nas PEC do Senado e também na Reforma Administrativa na Câmara, poisnpretendem promover uma grande reforma do Estado. O objetivo é substituir a prestação de serviço por distribuição de voucher à população carente para comprar bens ou serviços no setor privado, convertendo direitos universais e a prestação do Serviço Público em favor dos governantes, e o servidor, de agente do Estado, em refém do governo de turno.
6) Considerações finais
Como se pode depreender da análise da PEC, a Reforma Administrativa atende a duplo objetivo do governo. De um lado, transferir a infraestrutura de produção de bens e serviços do Estado, construído com recursos públicos, para o setor privado explorar em bases lucrativas. E, de outro, retirar direitos e reduzir o “prêmio” salarial do servidor, para usar a linguagem do Banco Mundial, um dos defensores de reformas no Serviço Público.
O governo, em lugar de regulamentar os pontos da Constituição pendentes de lei — como: 1) o teto remuneratório; 2) a avaliação de desempenho para fins de aquisição da estabilidade (estágio probatório); 3) a avaliação de desempenho para fins de demissão;4) as regras e diretrizes do sistema de carreiras; 5) a negociação coletiva no serviço público, para implementar a convenção 151 da OIT no Brasil; e 6) a regulamentação do direito de greve —, prefere o desmonte do Serviço Público.
E o mais grave é que suas alegações para justificar a Reforma Administrativa são falsas, tanto em relação à comparação da remuneração com o setor privado, cuja média nacional é de R$ 3.800, e com carreiras semelhantes no exterior, quanto em relação ao aumento do gasto com pessoal no Serviço Público federal, seja tendo como parâmetro o PIB, que se manteve abaixo de 5% nos últimos 20 anos, seja tendo como referência a Receita Líquida Corrente, que está muito abaixo dos 50%.
Uma reforma para reduzir gasto com pessoal não se justifica porque já existem 3 limites de controle, fixados na LRF:
1) limite total, que fixa em 50% o gasto com pessoal;
2) limite de alerta, que avisa sempre que chegar a 90% desse; e
3) limite prudencial, que começa a suspender direitos quando atingir 95% desse.
O objetivo final do governo, longe de ser a melhoria dos serviços públicos ou a adoção da meritocracia na Administração Pública, é contratar no setor privado os serviços e produtos atualmente prestados ou produzidos por instituições estatais, inicialmente por intermédio de organizações sociais e serviços sociais autônomos, sem fins lucrativos, e posteriormente por empresas privadas, com fins lucrativos.
Setores como Educação e Saúde, que estarão no grupo de cargo por vínculo indeterminado, porém sem direito a estabilidade, poderão dispensar a própria contratação direta, resolvendo-se o problema mediante a criação de Organização Social ou Serviço Social Autônomo ou, no futuro, mediante a distribuição ou o fornecimento de voucher à população carente, para que decida de quem comprar o serviço.
A sociedade civil, especialmente as entidades representativas dos servidões públicos, nesse ambiente, devem envidar esforços no sentido de esclarecer os reais motivos da reforma, chamando a atenção para os prejuízos que essa, se aprovada nos termos propostos, representará para o Serviço Público, para os servidores públicos e principalmente para o povo, especialmente as pessoas mais pobres que dependem da prestação do Estado.
(*) Jornalista, consultor e analista político, mestrando em Políticas Públicas e Governo na FGV/DF, diretor de Documentação licenciado do Diap e sócio-diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”.